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Veias Abertas

Atualizado: 8 de set. de 2022

A Sonata dos Desesperados ou O dia em que Sylvia Riveira enfrentou a guarda

Por Bruno Zambelli


Tem dias em que o mundo nasce disposto a mudar. Dias esses em que quase não é possível definir que dia se está vivendo. Diante da história, do grito seco que habita a revolta, pouco importa se é quinta ou sexta, ou se estamos em maio ou dezembro.


Assim o foi em Stonewall, quando a madrugada desceu a fio o horizonte e o sol começava a ensaiar seus primeiros raios nas vidraças da rua e lá bem longe, no fim da via, apontou o carro da polícia, do alto de sua crueldade e impunidade, rasgando as ruas do Greenwich Village em direção ao Stonewall.


Sylvia Rivera foi uma das principais figuras da Revolta de Stonewall


Aquela não era a primeira vez que os “canas” atentavam contra os frequentadores do lugar. A prática, apesar de abusiva e desumana, ficou famosa na área e não guardava segredos. O procedimento era padrão: à casa eram pedidos documentos, alvarás, notas fiscais de compra de bebidas e outras armadilhas burocráticas, já aos clientes a ordem era mão na cabeça, rosto contra o muro e documento em cima.


Entre uma e outra piada vinha o de sempre: murro no estômago, tapa na cara, cuspe, desprezo, ódio. Na maioria das vezes uma renca de gente era levada pra delegacia simplesmente para alimentar a obscena fome de sadismo dos porcos fardados. Mas não naquele dia.


Naquele dia os frequentadores do bar decidiram que não aceitariam mais serem tratados assim e que exigiriam seus direitos de qualquer maneira, nem que para tanto fosse preciso empunhar garrafas e tijolos ou sangrar e desmaiar no meio-fio.


Mas para compreender a Revolta de Stonewall e suas principais personagens, é preciso primeiro compreender o que era o Greenwich Village no final da década de 60.


Um dos mais famosos e tradicionais bairros nova-iorquinos, o Greenwich Village já foi lar de grandes nomes do cânone cultural como o mago do terror Edgar Allan Poe, o músico e ativista John Lennon, a editora-chefe da Revista Vogue, Anna Wintor, e grande parte dos poetas da geração Beat.


Diante de moradores tão notáveis quanto rebeldes fica impossível negar que o “GV” carrega em seu DNA, e em seu sangue negro de asfalto quente, a insubmissão e a revolta. Na década de 60 não era diferente. A contracultura estava no auge e a contestação social estava em todos os fronts: artes plásticas, literatura, música, jornalismo, cinema, política.


O bairro evidentemente absorvia todo esse clima de efervescência cultural, portanto seus bares e boates também estavam repletos dessa energia eletrizante. Assim também estava na época o Stonewall Inn, um misto de bar e boate quase ilegal, sujo, cravado no coração da principal rua do Greenwich.


Conhecido como undergound do underground, o lugar era ponto de encontro das figuras excluídas do cenário hype que rolava por ali. Os tipos mais comuns, que não tinham grana ou não eram aceitos em outros bares e boates, tinham no Stonewall Inn um porto-seguro.


Não é preciso dizer que por conta disso o lugar logo tornou-se o alvo preferido da polícia local e que o massacre, travestido de ordem, era sempre o mesmo, ao menos até aquele bendito sábado. Sim, foi num sábado!


Quando amar virou um ato de desafio


A tensão evidente se tornava cada vez maior a cada pessoa que era obrigada a deixar o espaço interno do Stonewall, já com as luzes acesas, em direção à rua para mais uma das tantas batidas polícias que ocorriam na região.


Tinham como objetivo principal não a apreensão de bebidas falsas ou a multa de bares ilegais, mas sim a opressão violenta e a intimidação pública direcionada à comunidade LGBTQIA+ que frequentava a região. Era preciso pouco para transformar a situação em algo extremamente fora do controle.


Esse pouco veio, dizem os relatos, de um grito seco em defesa do amor que rapidamente foi acompanhado por um tijolo que atingiu, caprichosamente, a fuça de um policial. Dali pra frente, daquele grito em diante, centenas de pessoas tomaram as ruas por dias seguidos, em diversas cidades do país, em defesa do direito de amar e exigindo respeito e direitos a toda a comunidade LGBTQIA+.


Daquele evento nasceria as Paradas do Orgulho LGBTQIA+ que até hoje ocorrem ao redor do mundo, e por conta desse primeiro passo muitos dos direitos das comunidades envolvidas foram conquistados.


Uma das principais figuras da Revolta de Stonewall, ao lado de Marsha P. Johnson, foi Sylvia Rivera, ativista trans latina que lutou pelo direito dos transgêneros e pela libertação gay. Há quem diga que foi Sylvia quem atirou o primeiro tijolo de Stonewall, apesar de ninguém jamais ter assumido o grande feito.


Lendas urbanas à parte, a trajetória de Sylvia Rivera é exemplo de como grupos militância e ação direta são soluções simples e eficientes para exigir, seja pacifica ou violentamente, aquilo que nos é negado pelas forças vigentes do Estado e do capital, apoiados por seus braços armados e por suas patrulhas ideológicas.

O discurso que reproduzimos nessa edição foi proferido por Sylvia Rivera na Parada Gay de Nova Iorque no ano de 1973. Na ocasião, Sylvia reclamava da perseguição que os transexuais enfrentavam dentro do próprio movimento:

*

“É melhor vocês todos ficarem quietos! Eu estou tentando subir aqui o dia inteiro pelos seus irmãos gays e suas irmãs gays na cadeia que escrevem pra mim toda maldita semana e pedem a ajuda de vocês. E vocês não fazem absolutamente nada por elas.


Vocês já foram espancadas? Estupradas? Presas? Agora pensem. Elas foram agredidas e estupradas e tiveram que gastar muito dinheiro na cadeia para conseguir uma casa e tentar a mudança de sexo (sic). As mulheres tentaram lutar pela sua mudança de sexo, para se tornarem mulheres, da libertação das mulheres.


E elas escrevem para a STAR, não para o grupo das mulheres. Elas não escrevem para as mulheres. Elas não escrevem para os homens. Elas escrevem para a STAR, porque nós estamos tentando fazer algo por elas.


Eu já fui presa! Eu já fui estuprada! E espancada. Muitas vezes! Por homens! Homens heterossexuais que não pertencem ao guarda-chuva gay. Mas vocês fazem alguma coisa por elas? Não! Vocês todos me dizem pra ir embora e esconder meu rabo entre as pernas.


Eu não vou mais tolerar essa merda. Eu já fui espancada, tive meu nariz quebrado, eu fui jogada na prisão, perdi meu emprego, perdi meu apartamento, pela liberação gay. E vocês todos me tratam assim? Mas que merda tem de errado com vocês todos?


Pensem nisso!


Eu não acredito numa revolução, mas vocês todos acreditam. Eu acredito no poder gay. Eu acredito em nós conseguindo nossos direitos ou então eu não estaria por aí lutando pelos nossos direitos. Isso é tudo que eu queria dizer pra vocês todos.


Se vocês querem saber sobre as pessoas que estão na cadeia, e não se esqueçam da Bambi L’Amour, Andora Marks, Kenny Messner, e outras pessoas gays na cadeia, venham ver as pessoas na casa STAR [endereço].


As pessoas que estão tentando fazer alguma coisa, por todas nós, e não homens e mulheres que pertencem a um clube branco da classe média branca! E é a ele que vocês todos pertencem!


Revolução Já!!!!


Me dê um G! [plateia: G!]

Me dê um A! [plateia: A!]

Me dê um Y! [plateia: Y!]

Me dê um P! [plateia: P!]

Me dê um O! [plateia: O!]

Me dê um W! [plateia: W!]

Me dê um E! [plateia: E!]

Me dê um R! [plateia: R!]

Gay… Gay Power (Poder Gay). Gay Power!!!”


Na Parada Gay de Nova Iorque de 1973, Sylvia Riveira reclama da perseguição que os transexuais enfrentavam dentro do próprio movimento


Bruno Zambelli é escritor, diretor teatral e ator.


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