Guia para os habitantes da cidade – “V”
Bertolt Brecht
Sou uma merda. De mim
Nada posso exigir senão
Fraqueza, traição e decadência
Mas um dia percebo:
Está melhorando, o vento
Sopra em minhas velas, chegou minha vez, posso
Ser mais que uma merda —
Começo a sê-lo agora mesmo.
Sendo uma merda notei que
Ao me embriagar, deito-me
Simplesmente e não sei
Quem está em cima de mim; agora não bebo mais —
Acabo de parar.
Para me manter viva, tive, infelizmente,
De fazer
Uma porção de coisas que me prejudicaram; tomei
Do veneno que teria
Matado quatro cavalos, mas só assim
Pude me manter viva; por um tempo
Usei cocaína, até parecer
Uma vara seca
Mas então me vi no espelho —
E parei imediatamente com isso.
Tentaram, naturalmente, infectar-me
Com sífilis, mas
Não conseguiram; só puderam me envenenar
Com arsênico: eu tinha a meu lado
Tubos que dia e noite drenavam pus. Quem imaginaria
Que uma tal mulher
Pudesse de novo enlouquecer os homens? —
Recomecei imediatamente a podê-lo.
Não fiquei com nenhum homem que não
Tivesse feito algo por mim; fiquei
Com todos de que precisei. Quase
Não tenho sentimentos, quase não me excito mais
Contudo,
Sempre me recupero; tenho momentos bons e ruins, mas
No final, mais bons do que ruins.
Noto que ainda chamo minha inimiga
De porca velha, e ela, como inimiga, logo percebe
Que um homem está a observá-la.
Mas, dentro de um ano,
Terei parado com isso —
Já comecei a parar.
Sou uma merda, mas
acabarei por tirar partido de tudo; vou
Subir, sou
Inevitável, sou a geração de amanhã
Logo já não serei nenhuma merda, mas
A dura argamassa com que
Se constrói a cidade.
(Isso eu ouvi de uma mulher)
(trad. Tércio Redondo)
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