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Veias Abertas

Atualizado: 21 de jun. de 2022

A última entrevista de Clarice Linspector

Concedida em 1977 ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura. Depois de gravada, Clarice pediu que a entrevista só fosse divulgada após sua morte. Foi ao ar dez meses depois. Clarice morreu em dezembro de 1977, aos 57 anos.



De minha sala até o saguão dos estúdios tenho que percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar naquela curta caminhada. Talvez falar sobre “A Paixão Segundo G.H”… Ou quem sabe sobre “A Maçã no Escuro” e “Perto do Coração Selvagem”… Vou recordando o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um estúdio para entrevistá-la.


São quatro e quinze da tarde e disponho de apenas meia hora. Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes terei de desocupar o estúdio. Estou correndo e antes mesmo de vê-la a pressão do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista. Eu odeio a TV brasileira! Só meia hora para ouvir Clarice. O pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou para conseguir essa brecha. Olho o relógio, não consigo me organizar, estou correndo, olho novamente o relógio. Estou desconcertado, atinjo o saguão dos estúdios e a vejo ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma amiga, perdida no meio do vaivém dos cenários desmontados, de diversos equipamentos e de técnicos que falam alto, no meio de um grande alvoroço.


Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a semelhante. Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli, entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados. Clarice me olha. O olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, chega Miriam, a estagiária do programa e fica encolhida e calada, o calor está ficando insuportável e o ar-condicionado não está ajustado, são apenas quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do terceiro mundo que me possibilita estar agora frente a frente com ela, Clarice me olha melindrosa, assustada e seu olhar me pede para que a tranquilize.


“OK, Júlio, tudo pronto”, a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda equipe para sair, cabo man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço. Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás. Peço silêncio e depois de uns dez segundos ecoa um “gravando”.


Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos. Estou completamente desconcertado, fico um minuto em silêncio fitando Clarice. Estou oco, vazio, não sei o que dizer. Clarice me olha curiosa, mas vigilante, defendida. Sou o senhor do castelo e — prepotente — guardo comigo a chave desta prisão. Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade.


A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos tiranos. Começa a entrevista. A entrevista avança. Seus olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Clarice está nua, não há perdão, Clarice agora está encapotada, ela se deixa agarrar, mas logo escapa, e volta, e me pega, e me sugere o longe, o não dizível, depois se cala. E quando nada mais espero, ela volta a falar. Faço uma antientrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.


Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: “Chega!”. Clarice pressente que por trás de meu sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico autodenominado “repórter” e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e partir.

Clarice Lispector, de onde veio esse Lispector?

É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando outra coisa que parece “Lis” e “peito”, em latim. É um nome que quando escrevi meu primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) diz assim: “Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo…”. Não era, era meu nome mesmo.


Você chegou a conhecer o Sérgio Milliet pessoalmente?

Nunca. Porque eu publiquei o meu livro e fui embora do Brasil, porque eu me casei com um diplomata brasileiro, de modo que não conheci as pessoas que escreveram sobre mim.


Clarice, seu pai fazia o que profissionalmente?

Representações de firmas, coisas assim. Quando ele, na verdade, dava era para coisas do espírito.


Há alguém na família Lispector que chegou a escrever alguma coisa?

Eu soube ultimamente, para minha enorme surpresa, que minha mãe escrevia. Não publicava, mas escrevia. Eu tenho uma irmã, Elisa Lispector, que escreve romances. E tenho outra irmã, chamada Tânia Kaufman, que escreve livros técnicos.


Você chegou a ler as coisas que sua mãe escreveu?

Não, eu soube há poucos meses. Soube através de uma tia: “Sabe que sua mãe fazia um diário e escrevia poesias?” Eu fiquei boba…


Nas raras entrevistas que você tem concedido surge, quase que necessariamente, a pergunta de como você começou a escrever e quando?

Antes de sete anos eu já fabulava, já inventava histórias, por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca. Quando comecei a ler comecei a escrever também. Pequenas histórias.


Quando a jovem, praticamente adolescente Clarice Lispector, descobre que realmente é a literatura aquele campo de criação humana que mais a atrai, a jovem Clarice tem algum objetivo específico ou apenas escrever, sem determinar um tipo de público?

Apenas escrever.


Você poderia nos dar uma ideia do que era a produção da adolescente Clarice Lispector?

Caótica. Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida.


Desse período você se lembra do nome de alguma produção?

Bem, escrevi várias coisas antes de publicar meu primeiro livro. Eu escrevia para revistas — contos, jornais. Eu ia com uma timidez enorme, mas uma timidez ousada. Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Chegava lá nas revistas e dizia: “Eu tenho um conto, você não quer publicar?” Aí me lembro que uma vez foi o Raimundo Magalhães Jr. que olhou, leu um pedaço, olhou para mim e disse: “Você copiou isso de quem?” Eu disse: “De ninguém, é meu”. Ele disse: Você traduziu?” Eu disse: “Não”. Ele disse: “Então eu vou publicar”. Era sim, era meu trabalho.


Você publicava onde?

Ah, não me lembro… Jornais, revistas.


Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decidiu assumir a carreira de escritora?

Eu nunca assumi.


Por quê?

Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade.


A sua produção ocorre com frequência ou você tem períodos?

Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável.


E esses hiatos são longos?

Depende. Podem ser longos e eu vegeto nesse período ou então, para me salvar, me lanço logo noutra coisa, por exemplo, eu acabei uma novela, estou meio oca, então estou fazendo histórias para crianças.


Como você explica a Clarice Lispector voltada para a literatura infantil?

Começou com meu filho quando ele tinha seis anos, seis ou cinco anos, me ordenando que escrevesse uma história para ele. E eu escrevi. Depois guardei e nunca mais liguei. Até que me pediram um livro infantil. Eu disse que não tinha. Eu tinha inteiramente esquecido daquilo. Era tão pouco literatura para mim, eu não queria usar isso para publicar. Era para o meu filho. Aí lembrei: “Bom, tenho, sim”. Então foi publicado. Foram publicados três livros de literatura infantil e estou fazendo o quarto agora.


É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?

Quando me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com o adulto, na verdade, estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma.


O adulto é sempre solitário?

O adulto é triste e solitário.


E a criança?

A criança tem a fantasia solta.


A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário?

Ah, isso é segredo. Desculpe, não vou responder. A qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado e isso acontece. Mas eu não sou solitária. Tenho muitos amigos. E só estou triste hoje porque estou cansada. No geral sou alegre.


Normalmente o contato do jovem estudante com você revela que tipo de preocupação?

Revela coisas surpreendentes, que eles estão na minha.


O que significa “estar na sua”?

É que eu penso às vezes que eu estou isolada e quando eu vejo estou tendo universitários, gente muito jovem, que está completamente ao meu lado e é gratificante, não é?


Nós ouvimos com frequência que as novas gerações pouco leem no Brasil. Você confirma isso?

Bem, os universitários são obrigados a ler porque impõem a eles a obra. Agora não estou a par dos outros.


De seus trabalhos qual aquele que você acredita que mais atinja o público jovem?

Depende. Por exemplo, o meu livro “A Paixão Segundo G.H”, um professor de português do Pedro II veio até minha casa e disse que leu quatro vezes e ainda não sabe do que se trata. No dia seguinte uma jovem de 17 anos, universitária, disse que este é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá para entender.


E isso acontece em relação a outros trabalhos seus?

Também em relação ao outros trabalhos, ou toca ou não toca. Suponho que não entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Tanto que o professor de português e literatura, que deveria ser o mais apto a me entender, não me entendia. E a moça de 17 anos lia e relia o livro, não é? O que é um alívio.


Antes de nos encontrarmos aqui no estúdio você me dizia que está começando um novo trabalho agora, uma novela…

Não, eu acabei a novela.


Que novela é essa, Clarice?

É a história de uma moça que só comia cachorro-quente. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima…


O cenário dessa novela é…

É o Rio de Janeiro… Mas o personagem é nordestino, é de Alagoas…


Onde você foi buscar a inspiração, dentro de si mesma?

Eu morei no Recife, me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira de nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. E peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a ideia. Depois eu fui a uma cartomante e ela disse várias coisas boas que iam acontecer e imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas aquelas coisas boas. Então a partir daí foi nascendo também a trama da história.


Qual o nome da heroína da novela?

Não quero dizer. É segredo.


E o nome da novela, você poderia revelar?

Treze nomes, treze títulos.


Rilke, em seu livro “Cartas a um Jovem Poeta”, respondendo a uma das missivas, pergunta a um jovem que pretendia se tornar escritor: se você não pudesse mais escrever, você morreria? A mesma pergunta eu transfiro a você.

Eu acho que, quando não escrevo estou morta.


Esse período?

É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo é necessário para haver uma espécie de esvaziamento para poder nascer alguma outra coisa, se nascer. É tudo tão incerto…


Clarice, mas como é que você escreve? Existe algum horário específico?

Em geral de manhã cedo. As minhas horas preferidas são as da manhã.


Você acorda a que horas?

Quatro e meia, cinco horas. Fico fumando, tomando café, sozinha sem nenhuma interferência. Quando estou escrevendo alguma coisa eu anoto a qualquer hora do dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é? Agora quando estou no ato de concatenar as inspirações, aí sou obrigada a trabalhar diariamente.


Você se considera uma escritora popular?

Não.



Por qual razão?

Me chamam de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética?


E como você vê esta observação “hermética”?

Eu me compreendo. De modo que não sou hermética para mim. Bom, tem um conto meu que não compreendo muito bem…


Que conto?

“O ovo e a galinha”.


Entre seus diversos trabalhos existe um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje?

“O ovo e a galinha”, que é um mistério para mim. Uma coisa que eu escrevi sobre um bandido, um criminoso chamado Mineirinho, que morreu com três balas quando uma só bastava. E que era devoto de São Jorge e que tinha uma namorada.


Sobre esse seu trabalho em torno de Mineirinho, qual o enfoque você deu?

Eu não me lembro muito bem, já faz bastante tempo. Há qualquer coisa assim como “o primeiro tiro me espanta, o segundo tiro não sei o que, o terceiro tiro…” Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência.


Em que medida o trabalho de Clarice Lispector no caso específico de Mineirinho pode alterar a ordem das coisas?

Não altera em nada. Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa.


No seu entender, qual é o papel do escritor brasileiro hoje?

De falar o menos possível


Você tem mantido contato como outros escritores?

Eventualmente.


Quais aqueles que você acredita serem os mais significativos?

Eu prefiro não citar nomes porque eu vou esquecer alguns e vai ofender, vai ferir. Assim, eu não cito ninguém.


Você discute muito com a Clarice Lispector escritora?

Não. Eu me deixo ser…


E convivem em paz?

Às vezes não em paz, mas…


Normalmente, que tipo de problema a Clarice Lispector escritora traz a você?

Às vezes o fato de me considerar escritora me isola.


Por qual razão?

Me põe um rótulo.


E você acredita que as pessoas olham para você através desse rótulo?

Às vezes através desse rótulo. Tudo o que eu digo, a maior bobagem, é considerada como uma coisa linda ou uma coisa boba. É por isso que não ligo muito para essa coisa de ser escritora e dar entrevistas e tudo.


Você acredita que uma pessoa vá a uma livraria comprar especificamente um livro de Clarice Lispector?

Parece que isso acontece. Eu sei porque às vezes me telefonam e me perguntam em que livraria encontram meu livro. Então eu sei que tem pessoas que vão procurar exatamente o meu livro. É que no fundo eu escrevo muito simples, sabe?


Será que as coisas simples hoje são recebidas de maneira complicada?

Talvez, talvez… Eu escrevo simples. Eu não enfeito.


Na sua formação como escritora quais aqueles autores que você sente que realmente lhe influenciaram, que marcaram?

Eu não sei realmente porque misturei tudo. Eu lia romance para mocinhas, livro cor-de-rosa, misturado com Dostoiévski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse, [o romance] “O Lobo da Estepe”, e foi um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora.


Isso ainda acontece de você produzir alguma coisa e rasgar?

Eu deixo de lado… Não, eu rasgo sim.


É produto de reflexão ou de uma emoção?

Raiva, um pouco de raiva.


De quem?

De mim mesma.


Por que, Clarice?

Sei lá, estou meio cansada.


Do quê?

De mim mesma.


Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?

Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.

Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da TV Cultura, de São Paulo.

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