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Foto do escritorURRO

Veias Abertas

Até a água do rio

Por Nei Lopes


Vistos daqui, os prédios ficam horríveis. E indefesos, sem os blindex, as grades, as câmaras, os porteiros. Dá meio que a impressão de que a gente pode pisar em cima deles. E que se vagabundo quiser, é só pular e cair em cima, pisoteando, esculachando. Como naqueles filmes, todo mundo de preto e de touca, metendo bala.!


Mas Tia Bilina nunca olha lá pra baixo. Nem pra frente. Nem pros lados. Passa o bêbado falando doideira, passa o moleque trepado da Uzi israelense, passa a menina de 12 anos exibindo o barrigão lustroso... E nem é com ela. Seus olhos olham pra dentro do tempo, pra dentro da mina de onde brotava aquela água. Água do rio. Limpinha, fresquinha, boa de lavar, cozinhar, beber, molhar horta.


“Ah, isso aqui agora está uma cidade! Água, tijolo, laje, encanamento… Mas a barra está pesando! No um tempo, era tudo mais difícil mas era melhor. A vida começava mais cedo e durava muito mais.”


É realmente incrível como isso aqui mudou. E olha que não tem nem… Deixa eu ver… Uns vinte anos, um pouquinho mais. Gozado é que todo mundo saiu pensando mundos e fundos, achando que era uma coisa; mas na verdade o sonho virou pesadelo. Daqueles! E eu, se não fosse o González... Nem sei se estaria aqui agora! Puxa! Como tudo mudou!...


“Cinco horas da manhã, a gente juntava a criançada prá pegar lenha ali em cima na mata. Porque a mata vinha quase até aqui. E a gente ia, machadinha na mão, rodilha pra não machucar a cabeça… Aquilo era uma festa, e a gente ia cantando: ‘Eu plantei semente/ sementinha, sementinha/ Papai corta lenha/ mamãe ta na cozinha’. A gente só tinha medo era de saci e mula-sem-cabeça. E ninguém entrava na mata sem botar uma cabeça de alho no bolso, oferecer um naco de fumo pro dono do mato e pedir licença.”


Tia Bilina parece meio que congelada na paisagem e no tempo. Olha com indiferença para os quatro meninos que passam, fuzis à bandoleira, pistolas na cintura. E vai desfiando suas intermináveis lembranças.


“Ninguém nunca soube direito como isso aqui começou. Veio um, que trouxe o outro. Outro que trouxe um.. Minha mãe dizia que naquela época a maioria era filho ou neto de africano. Meu bisavô mesmo, ela dizia que era um nego alto, forte e bonito. E que era de Moçambique… Depois é que começou a vir esse povo do Norte, da Paraíba, do Espírito Santo.”


Quem pensa que aqui é tudo uma coisa só, está muito enganado. Aqui tem também uma classe mediazinha como aquela lá em baixo. Que se fecha dentro do seu mundinho. Gente que também tem som, vídeo, televisão grande e até computador. Se enrola no cartão mas compra. E os filhos têm que ter tênis, boné, camiseta, bermudinha, tudo de marca.

“No meu tempo, os barracos já eram de madeira. Com telhado de folha e chã de cimento. Mas antes, eram de estuque, de sopapo, com chão de terra batida. Na ora de fazer a parede, trançava os bambus, fazendo uma espécie de grade e ia tapando os vãos com barro molhado. Muitas ainda eram cobertas de sapê.

Olhando daqui lá pra cima a gente ainda pode imaginar como era naquele tempo. O filetezinho d’água escorrendo pela pedra dá impressão de que é a nascente, a mina, chorando a escumbulhação a que isso chegou.

“No dia da inauguração do cano foi a maior festa! Trouxeram a bandeira da escola, uns meninos da bateria… Enfeitaram com bandeirinhas… Nós todas, eu, Nega, Mocinha, Neném… Compramos latas novas, botamos cabo, pintamos direitinho pra inauguração. Seu Antenor e a diretoria, todos de terno branco, subiram com o Deputado. Aquele foguetório, discurso.. Aí ligaram e a água jorrou. Foi uma festança! O samba comeu até o dia seguinte. Parecia que dali em diante ia ser diferente…”


Na verdade, viver aqui sempre foi um risco total. Lixo acumulado, mau cheiro, ratos correndo a céu aberto… Tudo isso sempre foi super arriscado. E até mesmo a natureza às vezes castigava também. Por quê, não sei.

“Por volta das cinco da tarde, o céu escureceu, de repente. E cada relâmpago e trovão que dava medo. Aí, começou a cair a chuvarada. Antônio estava lá embaixo. E disse que num minuto já estava tudo alagado. Foram três horas de chuva sem parar e aqui em cima já tinha pedra querendo descer. Acendi uma vela, me apeguei com meus santos e esperei. Mas o aguaceiro e a trovoada continuavam.”


Eu conheço essa história. Eu estava nela. Mas Tia Bilina contando, parece um filme, uma novela. É o jeito dela contar.


“Antônio resolveu vir pra casa de qualquer jeito. Mas lá embaixo era só barro, muito barro e lixo juntando. E na subida a água suja descia feito cachoeira, arrastando tudo. Ele aí pegou a outra ladeira. E quando dobrou a esquina, viu logo, na subida, o farol vermelho dos bombeiros acendendo e apagando. As águas invadiram a casa do Seu Domingos e morreram três pessoas: o sobrinho, uma filha, e a netinha dele, tadinha. E os corpos foram pra lá embaixo. Na porta dos prédios.”


Miséria, abandono, repressão, preconceito… Tudo fruto dessa sociedade injusta, que nunca se preocupou em fazer as cidades iguais para todos; sempre privilegiando uns e esculachando outros. Eu nunca me conformei com isso.


“Naquela noite, a gente passou mais de doze horas de sufoco. Seu Joel estava com o filho lá na birosca dele, que era ali do lado. Um casal, já bem mamado, resolveu subir o morro, mesmo com todo aquele perigo. E o toró caindo. E a trovoada comendo. Seu Joel então resolveu também se mandar e acabou de arriar a porta da birosca. Botou filho no colo e subiu, se escorando aqui e ali. Chegou em casa, deixou o filho e saiu pro portão preocupado com a mulher, que trabalhava em casa de família e ainda não tinha chegado. Foi aí que alguém perguntou: ‘Ô Seu Joel, aquilo ali no meio da lama, não é um porco?’ A pessoa perguntou porque, nos domingos, Seu Joel matava porco para vender. Aí, ele foi conferir: pegou a enxada e começou a remexer o lixo. Minha nossa! A mulher quase caiu pra trás, deu um grito e saiu correndo apavorada. Não era porco, não! Era uma criança”

Eu nunca me conformei com isso. E acho também que o pessoal aqui tem sua parcela de culpa. E urbanizar como? Até mesmo a associação. Eles deixam construir barracos um por cima do outro. Não tem lei, na tem ordem, não tem nada.


“Seu Geraldo aí foi ver que era. Se estava ali, era porque tinha vindo na enxurrada. E, assim, só podia ser gente conhecida.”


Eu sei como foi. Os moradores puxaram pra fora o corpo naquele montão de lixo e lama. Era o Augusto, sobrinho de Dona Ana. Ajeitaram ele ali, acenderam as velas e daqui a pouco, veio a notícia: lá embaixo, na subida, quase na esquina, tinha mais dois corpos, de uma moça e de um garotinho. Eram a filha e o neto de Dona Ana. Tinham também descido na enxurrada.

“Outra ocasião, tem uns quinze anos...”


A conversa ficou pesada. Tia Bilina tem um certo gosto pela tragédia. Então, está na hora de levantar o astral, mudando de assunto. E chegando, mesmo, onde eu quero chegar.

“Ih, minha filha, a coisa está fervendo! Você não viu as faixas? Pois é... Tem gente que não quer, não. Diz que ele roubou, fez, aconteceu. Mas, me diz uma coisa: quem deu quatro carnavais à gente? Não foi ele? Mocinha está com o outro. Eulália também. Eu por mim, acho que ruim ele, pior sem ele.”


Não sei com quem está a razão. Afinal estou fora há tanto tempo. Mas lembrança do início me confunde. Afinal, a primeira vez que eu subi aqui foi com ele. Pode ser pilantra, safado, aproveitador como dizem por aí, mas o fato é que se não fosse ele… A primeira vez que eu subi num palco, foi ele quem me botou lá. Se não fosse ele, hoje… Hmmm… Principal destaque?!


Madrinha de velha-guarda?! Rainha dos compositores?! Tsk! Bem verdade que aquela furada da excursão foi coisa dele. Nem é bom lembrar! Malandro indo em cana passista passando fome, meninas pedindo socorro em hospital de indigente. Foi barra pesada!


“Ele diz que, se for eleito, vai trazer de volta bons elementos e afastar aqueles que sujaram o nome da escola; que desviaram peças de bateria, que roubaram desde cascos de cerveja até os ferros das armações dos carros.”


Lembro de Veludo. Esse era um que tinha boas ideias pra escola. pra escola. Era pavio curto mas tinha disposição.


“Esse mudou, minha filha! Ninguém sabe onde anda! Dizem que primeiro entrou por causa de bulir nas coisas dos outros. Depois, virou xis-nove e andava por lá por baixo metido com os canas do Esquadrão. Aí, dizem que pegou uma cadeia pesada mas ganhou prisão-albergue. Ele sempre teve bons conhecimentos! Ai, pelo que a gente soube, foi até motorista de juiz e segurança de deputado. Chegava de carrão lá embaixo, botando banca. Mas, de repente, sumiu, tomou doril, ninguém sabe, ninguém viu.”

Veludo daria um bom presidente. Pelo menos, era de casa e tinha amor pelos Aprendizes.


“O pai dele veio pra qui ainda criança. E aqui ficou até morrer. Quando ficou rapazinho, então ele e povo dele é que formou os Aprendizes. Foi ele que escolheu as cores verde e amarelo, em homenagem à bandeira do Brasil. O primeiro samba da Escola também foi dele, mas era um samba meio boi-com-abóbora, meio bobo, sem muito sentindo. Ele costumava dizer que sofreu e apanhou da polícia por causa do samba. Ele e outros mais. E eu ainda peguei um pouco desse tempo. Hoje o samba é de bacana. Antigamente, violão, cavaquinho, pandeiro, era instrumento de vagabundo, não é como hoje! Agora, qualquer um que arranha um violãozinho é artista. Naquele tempo, nego com violão debaixo do braço era vagabundo. A polícia quebrava o violão ou o pandeiro na cara, na cabeça do crioulo. E não tinha com quem reclamar, não! O pai do Veludo, Seu Anacleto, foi sambista desse tempo.”

Não tem muito por onde levantar o papo, não! Os quatro moleques com seus fuzis e pistolas, voltaram e me olham, sugestionando.

Lembro do Beiçola, molequinho levado que não respeitava ninguém. Em casa, porque tinha a pele mais escura que os irmão, era sacaneado o tempo todo. Na tendinha, os marmanjos debochavam do beiço caído, babando. No campo, era o saco de pancadas dos moleques mais velhos. Que não deixavam ele entrar nas brincadeiras.

“Esse já foi, minha! Que Deus o tenha no Reino da Glória! Ou dos Quiumbas, sei lá… Tinha 13 para 14 anos e só andava doidão. Não respeitava ninguém mesmo! Batia na mãe, roubava, roubava dinheiro das mulheres, tomava bolsa de compras. E tudo isso garantido no bagulho que cheirava, no revolvão que não largava e nos companheiros dele ta. Teve um dia que o Batalhão ocupou o morro. E umas meninas aí, sem juízo, bateram palmas, cheias de graça com os peeme. Só que eles foram embora. E ainda botaram elas nuas na rua, pra todo mundo ver.”

Parece um filme americano. Os mesmos bonés de beisebol, as mesmas jaquetas, as mesmas grifes, as mesmas marcas, o mesmo som, a mesma ginga. É… globalizou, mesmo!


“Antigamente era cabelo esticado. Pra homem, eu não achava legal, não! Neles, eu gostava era do paletó comprido, a calça boquinha, o chapéu copa-norte... Era coisa de crioulo americano, também. O pessoal do cais é que começou com isso... Mas era alinhado!”


González, que lê muito sobre essas coisas, já me falou que o tóxico é hoje uma calamidade mundial. Porque, antes, droga pesada era coisa de rico. E hoje envolve os pobres também. Eu mesma, nesses dias aqui, já vi garotão do meu tempo, que hoje é pai de filho, queimando fumo e cheirando bagulho na frente das próprias crianças. Na maior.

“O pai desse menino bebia mas era trabalhador. E a mãe trabalhava em casa de família. Morava tudo num barracão lá em cima, naquela parte mais alta. Um dia, por causa dele, foi todo mundo expulso. Só ficou a avó, que estava entrevada e não podia sair. Ele então foi lá, e no meio do maior tiroteio, pegou a velha e tirou do morro.”


A avó, como Tia Bilina e outras tias, já tinha passado da condição de mulher. Porque mulher, aqui, é objeto mesmo. Lembro de uma reunião, há muito tempo, na Associação. A assistente social da Legião estava querendo esclarecer as mulheres. Falou de machismo, de controle de natalidade, de prevenção de doenças. A mulherada gostou muito. E parecia que tinha aprendido.

“Antigamente, lugar de esperar neném era em casa encolhidinha, de meia e pé caçado. Hoje elas andam por aí exibindo a barriga e sacudindo a bunda, com os celulares pendurados. É o fim do mundo minha filha!”


Sexo é bom, claro. Tanto que com 11 anos Luanne já fazia. Mas o que ela ainda gosta mesmo é de brincar de boneca. E aquele ar de auto suficiente que ela ostenta é de puro orgulho. Porque vai ganhar uma. Rayanne, de 13 anos; Kellen, de 12; e Karinny, de 15, também. E elas mesmas é que dizem: já que não podem ser modelos e manequins, como as louras da televisão; e como não nasceram pra ser empregadas de madame, é melhor mesmo ter uma bonequinha pra brincar.


“Isso vem no sangue, menina! A mãe dela também foi assim. Um dia ela veio aqui e se queixou que a casa dela estava caindo. O marido tinha ido embora e ela lá com os cinco filhos pequenos. Ela choramingava, dizendo que botou a vida dele na linha, que chegou a ter tudo em casa direitinho e de repente berimbolou tudo. Aquilo só podia ser feitiço, ela dizia. Mas o caso é que o homem se meteu é uma outra jogada, encontrou uma mais bonita e se mandou. Nem tudo na vida é macumba, não!”

Foi num samba, numa sexta-feira. De repente, me deu um troço esquisito. Eu não tinha bebido nada. E já tinha saído de casa meio sem graça, até sem vontade de ir. Mas era compromisso.


No portão da quadra já fiquei meio zonza. Depois, foi aquela sensação horrível. Quando me dei conta, eu estava na sala da diretoria, deitada no sofá e Tia Bilina, virada no santo, cuidando de mim, me soprando com a fumaça do charuto, virando a cachaça pelo gargalo e borrifando no meu rosto. Aí, vim uma vez, vim duas vezes e comecei a frenquentar, a me desenvolver. Desde aquele dia, mãe, mesmo, pra mim, sempre foi ela.

“Ih, já começou! Agora é todo dia essa inana! O alto-falante começa a apitar, esse homem começa a gritar feito um maluco… É ‘senhor’ pra cá, ‘senhor’ pra lá. Coisa mais irritante! Não sei onde é que eles arranjam tanta ‘glória’ e tanta ‘aleluia’. Já tem mais umas três casas dessas aqui em cima. Mulher que pulava a cerca, homem que batia na mulher, moleque que bulia nas coisas dos outros, está tudo agora de paletó, de saia comprida, com a bíblia debaixo do braço. No fundo é tudo uma grande malandragem! Mas, também, pra fazer uma obrigaçãozinha hoje se gasta um dinheirão, né? Você já viu quando é que está uma galinha, uma charuto, uma garrafa de marafo? E uma vela de sete dias? As coisas mudaram muito, minha filha!”


Olhando os prédios lá embaixo é que eu vejo, mesmo, como tudo mudou. A época era boa, os ventos estavam a favor. Eram as primeiras eleições livres depois de 40 anos. E a UCD ganhou. Se fosse agora, com essa lei nova, não sei não! Gonzaléz diz que os imigrantes legais já são mais de 200 mil. Principalmente do norte da África e daqui, da América do Sul.

E foi o Exu de Tia Bilina que faz tudo; o mal que veio pro bem:


A viagem… A encomenda que me pediram pra levar… A confusão… A cadeia… González me visitando, me apoiando, me tirando de lá, me levando pra conhecer a família dele…


“E você está bem, né, minhas filhas?”


Fomos de carro. Saímos de Lisboa e paramos em Évora, que fica uns 150 quilômetros. Vistamos o templo de Diana, a Catedral da Sé… Nessa igreja tem um pedaço da cruz em que Jesus morreu. Imagina! Depois, fomos até uma capela… Hmm… Sinistra! As paredes são forradas com osso e até caveira de gente morta.


“Crêm Deus Padre! Quê que isso? Quimbanda???”


Mas a comida foi uma delícia. Carne de porco, de carneiro, de cabrito, de perdiz. A senhora já comeu perdiz. A senhora já comeu perdiz? É demais!… E cada queijo! Sem falar nos doces! Tem um nome engraçado… Tacula… Sei lá… Mas é uma delícia!


Dormimos num parador Extremadura, que é a terra do presunto. Diária na base de 80, 120 euros. Dorme-se muito bem na Espanha!


De Guadalupe, pegamos Toledo e chegamos a Madri. Tudo limpo, tudo bonito…

“Essa vala aqui não tem jeito! Vem lá de cima. É como se fosse a vida da gente, suja, podre, fedendo… Mas está aí. Fazer o quê? E ela é o que restou do rio, minha filha.”


É … Tudo mudou mesmo. Até a água do rio.


Texto publicado em In: 20 Contos e uns trocados


Nei Lopes é um compositor, cantor, escritor e estudioso das culturas africanas, no continente de origem e na diáspora africana. Nasceu em Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro. Notabilizou-se como sambista, principalmente pela parceria com Wilson Moreira. Ligado às escolas de samba Acadêmicos do Salgueiro (como compositor e membro da Velha Guarda) e Vila Isabel (como dirigente), hoje mantém com elas ligações puramente afetivas.

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