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Veias Abertas

Qual é o povo que não bate o seu tambor?

Por Luiz Antonio Simas


“Tambor, tambor, Vai buscar quem mora longe! Vai buscar quem mora longe!”

- Ponto de Caboclo


As ruas têm sonoridades. Entreguem um tamborzinho no meio de uma praça para uma criança e ela provavelmente vai batucar. Em diversas culturas os tambores contam histórias, ampliam os horizontes da vida e tem gramáticas próprias, que muitas vezes expressam o que a palavra não alcança.



Nas religiosidades brasileiras de matrizes afro-ameríndias, tocadores dos tambores rituais são educados nos saberes da percussão para aprender os toques adequados para cada divindade. Há uma sofisticada pedagogia do tambor, feita dos silêncios das falas e das respostas do corpo, fundamentada nas maneiras de ler o mundo sugeridas pelos mitos primordiais.

A historiografia das escolas de samba registra que as agremiações, durante boa parte da trajetória, contaram no enredo a história oficial. A afirmação procede se atentarmos apenas para a dramatização dos enredos e letras dos sambas. As baterias, todavia, diziam outra coisa, elaboravam outros relatos, perceptíveis para aqueles que conheciam as histórias que os tambores contavam.


A caixa de guerra, um tambor com uma membrana superior e outra inferior, é um instrumento que dá constância rítmica ao conjunto de uma bateria, além de sustentar o andamento do samba. O toque das caixas, na maioria das vezes, identifica as orquestras de percussão das agremiações e em vários casos fundamenta-se na batida dos deuses.


O toque de Oxóssi (o aguerê) marca a bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel, por exemplo. O Salgueiro, com as caixas posicionadas no alto, apresenta um toque mais próximo da levada do pandeiro do partido-alto (característica também da Estácio e da Unidos da Tijuca). Os exemplos são variados e as diferenças, fascinantes.


Quem apenas conhece a gramática das letras vai escutar um samba da Mocidade e identificar o enredo proposto. Quem aprendeu o tambor escutará a louvação aos orixás caçadores sintetizados no mito de Oxóssi e no toque do aguerê. Enquanto as fantasias, alegorias e a letra do samba evocam uma história qualquer, a bateria evoca a astúcia do caçador que conhece os atalhos da floresta.


O toque de caixa da bateria da Mangueira é um manancial de referências capaz de amalgamar a pegada das caixas das folias de reis – cortejos populares no morro da Mangueira, que saúdam os três reis magos do oriente no encerramento do ciclo das festas do Natal – e o Ilú, toque consagrado a Oyá/Iansã, a senhora dos relâmpagos e ventanias, nas casas de candomblé.


Quando em 2016 a Mangueira desfilou com o enredo “A menina dos olhos de Oyá”, em homenagem a Maria Bethânia e cheio de referências a Iansã, me perguntaram se aquela era as primeira vez que a Estação Primeira falava da orixá dos ventos nos desfiles. Respondi que do ponto de vista das gramáticas normativas podia até ser. Do ponto de vista das gramáticas dos tambores, os ritmistas da Mangueira contam as histórias das grandes ventanias de Oyá desde a década de 1930.


Recentemente, em 2018, um detalhe me emocionou especialmente no sambódromo: a bateria do Império da Tijuca veio tocando em alguns trechos do samba um ritmo chamado Opanijé. O enredo era sobre o Olubajé, uma festa dedicada ao orixá Omolu, o Senhor da doença e do poder da cura. O Opanijé é toque consagrado a Omolu nos terreiros de candomblé. A bateria saudava o orixá no seguinte trecho do samba:


Eu quero ver Omolu dançar

No Opanijé com o seu xaxará

Tem pipoca no alguidar, mandingueiro

Sinfonia imperial chegou no terreiro...


Na hora em que escutei, falei para o escritor e amigo Alberto Mussa, que assistia ao desfile ao meu lado e conhece os toques para os orixás: “Mussa, os caras vão bater o Opanijé a avenida inteira!”


Para quem não conhece o Opanijé, o fato passou desapercebido ou pareceu só uma bossa da bateria. Está longe disso, Para a turma do Morro da Formiga – a comunidade da escola – versada na gramática dos tambores, foi a evocação mais forte, o discurso mais bonito, da noite dos desfiles. Vendo as alas, dava para sacar quem era do candomblé. Alguns componentes, no toque do Opanijé, faziam a dança sagrada de Omolu, o Rei da Terra.


Isso aconteceu porque escolas de samba e terreiros são, em larga medida, extensões de uma mesma coisa: instituições associativas de invenção, construção, dinamização e manutenção de identidades comunitárias, redefinidas no Brasil a partir da fragmentação que a diáspora negreira impôs. O tambor é talvez a ponte mais sólida entre o terreiro e a avenida.


Há no idioma dos tambores um potencial educativo vigoroso de elucidação dos mundos e interpretação da vida. É sempre tempo de reconhecer e estudar as possibilidades didáticas que os atabaques tiveram na formação das crianças de terreiro e escolas de samba. As agremiações e suas baterias precisam ter consciência da dimensão civilizatória que as escolas de samba tiveram um dia. Que voltem a ter e reassumam a condição cotidiana de educar para a liberdade.


Os tambores formaram mais gente do que os nossos olhares e ouvidos, acostumados apenas aos saberes normativos que se cristalizam nas pedagogias oficiais, imginam. Quem manda ignorar a rua?


Luiz Antonio Simas é historiador, escritor, professor e compositor.


O texto reproduzido acima é um dos 42 textos que compõe o livro O Corpo Encantado das Ruas.

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