Um homem raso em busca da eternidade
Por Cunhambebão Neto
Revisitar é reviver ou reconhecer, ainda que desconhecendo. Essa coluna, como muitos já sabem, tem por objetivo dar luz a artistas de Campinas que tiveram suas obras e suas vidas ignoradas ou apagadas das páginas escritas sobre a Cidade das Andorinhas.
Nesta Edição, trazemos ao público a história de Paulo Amagliesi Beltrono, um italiano residente em Campinas nos anos 60 que dedicou sua vida a duas paixões: a literatura e o teatro.
Fosse usando seus conhecimentos literários para desenvolver seus personagens ou seus conhecimentos de palco para incrementar seus contos, Paulo foi um dos grandes intelectuais da boemia campineira, atuando em diversos grupos de teatro, além de compor com músicos ilustres da cidade como Teco Seade, Zeza Amaral, Pezão e tantos outros.
De sua lavra, destacamos o texto “Um homem raso em busca da eternidade”, na qual com maestria o ítalo-campineiro utiliza-se de suas duas paixões para compor um conto que transita entre a autoficção e o diário de trabalho.
Obra: " Homem Amarelo", de Anita Malfatti
Um homem raso em busca da eternidade
“Um homem comum”. Essas três palavras simples, rotineiras, que usamos cotidianamente parecem, à primeira vista, inofensivas e familiares: um artigo indefinido, um substantivo masculino e um adjetivo que juntos formam uma única frase. É possível fazer quase tudo em matéria de escrita com apenas três palavras como essas.
Em um dia inspirado Ernest “Papa” Hemingway seria capaz de fazer um conto completo com elas, acreditem. Apesar disso, dessa possibilidade infinita de organização de palavras para expressar algo, uma frase para o teatro sempre foi pouco, pouquíssimo!
Não que estejamos tratando de uma arte de excessos, pelo contrário: com o passar do tempo as artes cênicas aprenderam a se adaptar aos perrengues envolvidos em sua produção, no entanto o teatro ocidental ainda vive refém das palavras de modo que essas três poucas significam diante do emaranhado de letras, frases e rubricas que compõe um texto qualquer a ser encenado. Isso até aquele momento. Isso até aquele maldito dia em que o diretor da peça, em meio ao ato de distribuição dos papéis, apontou o dedo para ele e proclamou: “um homem comum”.
O peso daquelas três palavras imediatamente se aconchegaram sobre os ombros do pobre diabo, o ator, e por ali ficou. O homem comum. Quem será esse homem comum? Como compor uma personagem sem passado, sem futuro e até mesmo sem história? Qual a face do homem comum? Sendo ele tão comum, como todo homem, teria ele a face de todos os homens do mundo ou não teria face alguma? Quais sonhos carrega o homem comum? Todos os sonhos do mundo, diante de todas aquelas faces, ou o homem comum, como nós, esqueceu os sonhos numa esquina qualquer junto à sacola de mágoas que carregava? Vai saber.
O fato é que assim, comumente, o coitado do ator perdeu o chão e o sossego. Tudo por conta daquele dedo que o seguia onde quer que fosse, em riste, denunciando-o no meio da multidão: “eis aí, respeitável público, um homem comum”.
Decidido, apesar de desanimado, levou a coisa adiante mesmo a contragosto. Sabia que outrora, mesmo que em tempo distante, havia sido também esse homem comum. De alguma forma carregava dentro de si, em algum canto, essa normalidade que afogava os homens genéricos. O problema é que há muito já não se encontrava com ela. Foste sim, em alguma era esquecida, esse homem.
A grande dificuldade, no entanto, é que depois disso, por força do destino ou do ofício, fora também tantos outros. Estava definitivamente perdido. Aturdido com o fato de não conseguir se encontrar nem mesmo dentro de si, e por ter extraviado, sabe-se como, o homem que por certo tinha sido um dia. Comum, como todos os outros do globo.
Os dias esgotavam-se em desespero e com eles esgotou-se também a paciência do homem de teatro. Era impossível cavocar dentro de si esse “HOCNI”: homem comum não identificado. No sítio arqueológico de sua memória haviam infinitos buracos e em cada um deles um personagem, ou um homem, em qual o ator já tivesse se transformado: Ricardo III, João Grilo, Édipo, Trepliov.
Havia feito os maiores e mais importantes personagens do teatro durante os anos, construindo uma sólida e inquestionável carreira. Era, e isso o era acima de tudo, o primeiro ator da companhia e só esse fato já o afastava completamente da possibilidade de ser um homem comum.
Há tempos não sabia o que era a vida simples. Acostumara-se com o tempo a ser diversos homens, todos eles, notáveis. Era herói, anti-herói, bandido, mocinho, rei. Era o protagonista de sua própria vida e de tantas outras, oras, e justamente por isso sabia que era impossível encontrar dentro de si mesmo esse homem comum, se é que um dia o tivesse guardado. Sim, pois até de ter esse homem dentro de si ele já duvidava. Será que havia perdido pra sempre o homem comum que um dia jurava ter sido? Não sabia!
Diante do fracasso dessa regressão forçada ficou ainda mais abatido. “A memória é mesmo um poço sem fundo”, dizia a si mesmo. Agoniado, procurou no estudo e nos homens que amava a resposta para a composição do personagem: Nada! Stanislavski, Artaud, Grotowski, Peter Brook; nenhum dos deuses a quem batia cabeça dava conta de ajudá-lo a definir aquele homem pacato encostado em uma esquina qualquer da vida.
E tome nomes e, com esses nomes, novas tentativas: Eugenio Barba, Boal, Kantor. Nadinha de nada! Nos ensaios ia enrolando como podia: ganhava na impostação, no corpo e, quando as forças pareciam acabar, ganhava no grito.
Controlava o frio e a queimação na barriga com Omeprazol e “reza braba”, como dizia aos mais íntimos em momentos de descontração, cada vez mais raros. Almejava ser um homem comum, por mais que não conseguisse, como Hitler um dia, dizem, desejou ser artista. Nada. Nadica.
"Niente", como dizia seu avô. O caos instalou-se em sua cabeça, definitivamente. Era um homem amargo, doente. Sofria, e sofria muito, por ser diferente, ter particularidades. Queria ser um homem invisível, daqueles que podem ser chamados por qualquer nome e que em nada se diferem do próprio nada.
Queria arrancar na base da força a própria face. Tirar de sua lembrança e de seu corpo tudo que foi um dia, tudo que ainda poderia ser. Nada. Na semana da estreia o pobre diabo do ator estava um caco: já não dormia, comer não podia e se sentia triste. Assim, de maneira comum, como tantos outros diabos em cima do globo.
Dia da estreia. Na coxia o ator, o diabo, o humano. Todos padecem do mesmo estresse. Ansiedade. Entre os atos, o insensato, o homem que corre com o texto dado de bate-pronto. O momento perfeito, o irrealizável, não veio. Peça que segue mesmo sem roteiro. Dissolvido em suor, salgado pelas lágrimas do fracasso, o homem atrás do palco chora de maneira copiosa.
Se vê não como um homem comum, mas como um covarde. As lágrimas lhe encharcam o rosto e a memória. “O homem comum também chora”, pensa enquanto se esconde no camarim que ostenta seu nome e através dele documenta a sua vergonha.
Boca de cena. Sozinho. O buraco negro a lhe corroer a retina. Onde foram parar todos os momentos perfeitos vividos por aquele homem tão incomum dentro daquele tablado? Teriam sido eles todos fingidos? Sim. Na verdade, e até então ele nunca havia percebido, aqueles momentos nunca existiram. A realidade é que aquele pobre ator nunca havia sido arrebatado por um personagem.
Desempenhara, sempre e sem perceber, o mesmo papel: o de homem comum. Não existiam mais Ricardos, reis ou mocinhos. Ele sempre fora como todos os outros homens: um ser raso e previsível, escondido por trás de uma máscara, de uma maquiagem ou de um motivo para não ser ele mesmo.
Embasbacado, perdido, percebeu que o pavor de deixar o palco era na verdade o pavor de retornar, toda noite, à sua própria solidão. E ali, amedrontado e sozinho, percebeu que até mesmo a eles, aos homens comuns, era possível sonhar com a eternidade; mesmo que apenas por um instante, mesmo que só até o fim da cena.
Cunhambebão Neto é o pseudônimo de um atento observador das artes reais e trivais da cidade.
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