Traços Talantes
- URRO
- 13 de mar. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 21 de ago. de 2024
Frestas anatômicas
Por Cunhambebão Neto
Revisitar é reviver ou reconhecer, ainda que desconhecendo. Essa coluna, como muitos já sabem, tem por objetivo dar luz a artistas de Campinas que tiveram suas obras e suas vidas ignoradas ou apagadas das páginas escritas sobre a Cidade das Andorinhas. Algumas dessas vozes ainda ecoam no fundo de algumas poucas almas, mas nenhuma foi tão injustiçada quanto a de Décio Almeida dos Anjos.
Nascido na periferia da cidade, Décio começou a escrever para lidar com sua própria impossibilidade. Filho de pais desconhecidos, viveu e cresceu pulando de manicômio em manicômio, não pela falta de razão, mas pelas mãos de uma cidade que se recusa a cuidar de seus filhos abandonadas e prefere encarcera-los e calá-los em presídios, instituições sociais, cemitérios.
Décio não se calou, e publicou seu desespero em periódicos independentes. Abaixo reproduzimos um pequeno conto de sua autoria, publicado em 1943 na Revista Submundo.

Obra de Jober: Obsessão de Edipo
A obsessão
A fria madrugada espantava toda a coragem da alma. Era quase inverno. As folhas balançavam na copa das árvores marcando o compasso do silvo que o vento entoava ao passar por entre as frestas das janelas metálicas. Um gato vira-latas repousava no alpendre da casa abandonada de fronte ao nada.
A chuva passeava por entre os caminhos de barro que contornavam os antigos paralelepípedos da ruela. O dia era cinza, como a vida, e trazia pra dentro do peito toda a melancolia do mundo.
O cheiro da infelicidade emanava da antiga casa de grades brancas no fim da rua, onde residia aquele que todos temiam de uns tempos pra cá. Perdeu o juízo! Dizia a vizinha em tom de escárnio. É um pobre coitado! Palpitava o senhor enquanto pitava seu primeiro cigarro.
O mal estar era nítido. A manhã gelada pressionava o corpo bêbado e disforme contra a cama. A infelicidade líquida da noite anterior se fazia lembrar no amargor que tomava conta da boca ressecada pelo tempo. Há dias não dormia. Na verdade, já não conseguia mais viver há algum tempo. A bebida o socorria nas horas de desgosto, onde era impossível controlar os desejos obscuros que o atormentavam.
Comer, um dos poucos prazeres que tinha, agora parecia uma missão hercúlea. Gostaria, na verdade, de cravar os dentes em algo que lhe alimentasse o peito.Nada mais fazia sentido. Nada mais possuía encantos. Nada valia a pena.
Tinha, isso era certo, chegado ao fundo do poço.
O rosto, outrora bronzeado pelo sol, agora ostentava uma palidez assustadora. As olheiras adornavam-lhe a cavidade abaixo dos olhos, amarelados por disfunções hepáticas adquiridas há alguns meses que acabaram por apodrecer-lhe as maçãs da face. Havia se transformado, desde aquele maldito encontro, em um morto vivo a caminhar pela madrugada sem graça de nossa terra.
Passava os dias caminhando pela Francisco Glicério em busca de sua joia preciosa. O ritual diário causava dores alucinantes no músculo do pescoço, mas era preciso se manter firme em sua busca inglória. Se pudesse ao menos voltar no tempo e esquecer que a algum tempo atrás encontrou, no ir e vir das pernas apressadas pela rotina, o paraíso na terra.
E como era linda! Era sutil, como a perfeição deve ser. Carregava em seus movimentos toda a beleza do mundo. Aliás, tinha a certeza de que se houvesse alguma saída pra essa existência absurda, ela passaria obrigatoriamente por aquelas curvas sagradas.
Lembrou que a seguiu, insistentemente, na subida da Treze de Maio. Apertava o passo e o peito na busca desesperada para reconhecer e louvar aquela que tinha, a partir daquele momento, toda a sua atenção e devoção.
Mas nada disso adiantou. Assim como chegou, ela partiu: no meio de uma multidão de zumbis em busca do nada. Prometeu a si mesmo fazer de sua vida uma busca incansável. Precisava encontrar uma razão para viver e estava certo de que havia encontrado.
Passava agora as noites a beber, tentando encontrar uma saída para sua obsessão antes que fosse tarde. Mas como encontrar alguém que não se conhece? Como capturar um fantasma no breu de sua própria retina?
Com o passar do tempo a coisa só piorou: a barba e os cabelos cresceram um tanto, e já não recebiam o mesmo cuidado de antes. A magreza era evidente, assim como o odor putrefato que ecoa, não do corpo, mas da alma desses homens desgraçados. As unhas, apesar de aparadas, denunciavam o amarelado que vinha do excesso de nicotina, que também lhe causava uma tosse irritante.
O pânico que sentia ao imaginar o fracasso de sua jornada causava-lhe um tremor que o impedia até de respirar. Definhava a olhos vistos. Até que em uma manhã cinza de Outono pôs fim a sua agonia. Fechou os olhos, como há tempos não conseguia, e sonhou. No sonho foi à forra: beijou, mordeu e abraçou seu objeto de desejo. Durante algumas horas foi, como sempre pretendeu, um homem feliz.
Como todo homem sábio, recusou-se a acordar de seu próprio devaneio e mergulho inteiramente por entre as frestas anatômicas da única santa que poderia louvar. É bem verdade que perdeu completamente o juízo, mas ganhara algo absolutamente maior: o delírio!
Cunhambebão Neto é o pseudônimo de um atento observador das artes reais e trivais da cidade.
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