Tenho que me livrar logo disso
Por Roberto Cardinalli
"Nunca consegui ver nem um relance como os outros devem ver o farsante".
David Bowie
Imagem: Reprodução da internet
Você não me conhece e certamente nunca vai me conhecer. Está tudo sem graça nesse funeral. Eu estou sem graça. Não sei o que fazer a não ser ficar com a mão no bolso encostado na parede. Vim aqui só para me despedir do Feitosa. Tinha tanta coisa para falar para ele. Mas o pior é que, na verdade, nem meu amigo ele era. Só sabia que passava horas jogando o tempo fora.
Conheci o Feitosa no dia em que ele se mudou para a casa ao lado da Vanda, a crioula que dorme comigo nas noites de segunda-feira. Estava passando em frente quando vi um cara de uma certa idade chegando com apenas uma mala e um violão pendurado no pescoço. Me pareceu um sujeito que teve várias desavenças com vida. Sua feição dizia mais que palavras.
Nesse dia pensei em dar uma boa tarde e dizer: seja bem vindo à redondeza, mas preferi apenas ficar olhando. Mais tarde, da janela do sobrado da Vanda, vi o Feitosa varrendo a frente da sua casa. Não tinha a intenção de me aproximar.
Certa noite apareceu uma mulher sozinha. Bateu palmas. Chamou pelo Feitosa, mas ele não deu as caras. Minutos depois percebi que a luz do quintal estava acessa. Na semana seguinte ela apareceu no meio da tarde com um menino; devia ter uns dez anos. Com a luz do dia, desta vez percebi que ela tinha uma boa aparência. Sua pele era morena, com um quadril avantajado e estatura baixa. Pernas grossas. Vestia um vestido curto estampado. Estonteante. Os cabelos eram bem lisos e compridos, e me pareceu bem mais nova que o Feitosa. Mais uma vez, ele se fingiu de morto. Não me perguntem como e nem por quê, mas tinha certeza que ele estava lá, quieto como um rato.
Feitosa sempre me pareceu um sujeito estranho. Tinha o hábito de não abrir as cartas que chegavam pelo correio. A caixa de entrada estava sempre lotada e as pilhas de contasse amontoavam com o passar dos dias, a ponto de ficar amassadas quase saindo para fora. A Vanda me disse uma vez que ouviu de uma vizinha que ele tinha perdido a chave da caixa do correio e, por isso, não conseguia abri-la. Mas eu não acredito nisso.
Um dia a moça bateu na casa da Vanda.Eu não estava. Vanda perguntou se o Feitosa morava na casa ao lado. Ela disse que não tinha certeza, mas achava que sim. E pediu encarecidamente para mandar um recado: o menino iria morar com o pai definitivamente e que agora o Feitosa podia voltar a viver com ela. Vanda não prometeu nada para a moça.
Quando cheguei na segunda-feira seguinte, Vanda me contou. “Você sabe que eu não gosto de me meter na vida dos outros, né”. Ela ficou me olhando... Esperando que eu decidisse o que fazer. Preferi ir para a cozinha, sem dizer nada. Abri a geladeira. Vanda tinha ido ao supermercado. Sabia que eu viria e encheu a geladeira de ceva. Ah essa crioula!!! Abri uma latinha e fui para o quintal.
“Você não me ouviu?”. “Acha que eu devo falar com ele?”
Só eu sabia que ele não queria ver a moça. Vai ver estava se escondendo. “Você vai falar com ele”, sentenciou Vanda. “Vocês são 'homi' e se entendem”. “Agora vou tomar um banho e te esperar”. Acho que nunca vou esquecer a Vanda.
Ficou o dito pelo não dito. Eu não disse que iria falar com o Feitosa nem tampouco confirmei que iria. Só sei que nesse dia ainda matei pelo menos mais dez latinhas de cerveja.
Dias depois estava saindo da casa da Vanda, quando encontrei sem querer com a moça apertando desesperadamente a campainha da casa do Feitosa. Ela olhou pra mim e pediu um favor: que entregasse um bilhete ao Feitosa. A moça se chamava Maria Aparecida. Era bonita, olhos castanhos, braços firmes. Não tive como falar não.
Aguentei uns bons dias, remoendo essa história toda na minha cabeça, mas depois de matar o restinho de uma garrafa de conhaque não aguentei. Li o bilhete.
“Porque você se foi? Será que fui tão maldosa assim com você? Você sabe que sou meio explosiva de vez quando. Sei que não deveria falar sobre seu pai daquele jeito. Desculpa. Seu pai sofreu com essa maldita doença. Desculpa mais uma vez. Mil desculpas. Sinto a falta de alguém me abraçar na cama. Tá tudo bem; o Benjamin agora está com o pai. Me liga 9 91...”
É claro que não posso revelar aqui o número do telefone dela. Queria entregar esse bilhete ao Feitosa. Juro que queria.
Por isso, vim aqui nesse funeral chato. Como o Feitosa não era um sujeito dos mais sociáveis com pouquíssimos amigos quase ninguém veio se despedir dele. Mesmo assim, a impressão é que todos estavam olhando para mim. Sinto isso quando o hálito está seco. Só queria dizer que tenho pena do Feitosa. Tenho mesmo.
Foi contaminado pelo pai e ficou em completo isolamento.
Fiquei o tempo todo no funeral tentando encontrar um jeito de se aproximar dele e deixar o bilhete no bolso do velho terno cinza que o embalava no desgastado ataúde de madeira.
Bem, tenho que me livrar logo disso tudo. Hoje é quinta-feira, dia de dormir na casa da Maria Aparecida. Será que a Vanda vai me perdoar.
Roberto Cardinalli é jornalista e escritor
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