Crônica perdida*
Por Zeza Amaral
Nem ao mar, nem à terra, nem ao homem. Apenas o papel sustenta uma poesia, uma letra de canção, uma carta, uma bíblia. E assim perdi uma crônica quando desliguei o computador. E ninguém salva o que está na selva de um computador. Ou você salva ou se ferra. Eu me ferrei.
E nem lembro do que estava escrevendo. No momento até que achei que seria um bom assunto e assim fui. Parei para tomar um café e esqueci de salvar o texto. A mulher chegou de seus afazeres e abaixou a tela do laptop. E lá se foi tudo o que havia lá. Já vivi situação semelhante. Aliás, muito pior. Escrevi a letra de um samba para uma bela melodia do saudoso Alfredinho Soares e guardei em um guardanapo. E veio uma chuva de verão e fiquei molhado naquela madrugada. Gosto de chuva. Gosto de água. E o guardanapo se esmoleceu no meu bolso.
Nunca lembrei da letra do samba. Foi embora com as águas da chuva. E até hoje tento escrever um samba da chuva que levou as palavras de um guardanapo de botequim. E o Alfredinho foi embora, o Césinha foi embora, o Nadir foi embora, e tudo foi embora do meu samba perdido numa noite de chuva.
Não reclamo de nada. Não sou e nunca fui tabuleta de esquina. Apenas sinto falta de bons velhos companheiros de botequim.
Perdi muitas coisas na vida. Relógio, uma pulseira de prata, e até mesmo um violão. Mas o que nunca me doeu foi uma moça que prometeu um grande amor e desapareceu. O que dói mesmo é o samba do guardanapo, naquela chuva de madrugada.
Alfredinho foi embora e sempre reclamou daquela letra. E não estou com vontade de falar sobre o assunto. Mesmo porque o defunto está ausente. E a rima foi proposital em nome da saudade.
A Adega Florence foi um lar; e os italianos foram nossos pais naquela boêmia, nos cuidando, nos alimentando e, mais ainda, cuidando das nossas canções, oferecendo papéis e canetas. E um prego para pendurar nossos porres.
Teve um tempo em que tive de tirar a barba e cortar o cabelo. Era uma exigência para fazer a minha carteira de identidade. E naquela madrugada apareci na adega limpo de pelos. Tinha um repórter de um jornal paulistano fazendo uma matéria sobre a madrugada de Campinas. Eu apareci no pedaço e ninguém me reconheceu. E os amigos disseram ao repórter que o cara para explicar a boêmia de Campinas seria eu.
Eu estava lá, me alegrando com a consideração, até que o garçom me reconheceu: pelo aroma da minha colônia. Disse a ele para curtir o momento inusitado e por um bom tempo tive a sincera amizade dos amigos de botequim. Foi quando me traí quando falei “sensacional” e o Alfredinho sacou a frase. Só eu falava daquele jeito. E tudo terminou em boas prosas e risadas.
O repórter não entendeu nada e se mandou em um fusca da Folha de São Paulo. Nunca soubemos da matéria. E nem do nome do rapaz. E as letras dos nossos sambas ficaram gravados em nossas etílicas memórias. Ou seja: foram esquecidas pelas mesas da Adega Florence. Houve algumas que resistiram à noite e até hoje carrego algumas comigo.
Alfredinho se foi. Césinha também se mandou. Gabrinha da Cuíca se escafedeu. E tantos outros se mandaram da vida. E estou aqui com as minhas prosas e velhos sambas de boteco. Pode parecer pouco, é claro, mas é tudo o que tenho na vida. É isso. Mas a crônica perdida deve andar por aí.
*Texto publicado em 19 de fevereiro de 2022 no Hora Campinas.
Zeza Amaral foi jornalista, escritor e músico; faleceu no dia 3 de outubro de 2024.
Comentários