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Tensão sobre o Tom

Atualizado: 15 de mar. de 2023

Memórias musicais

Por Bruno Ribeiro


É muito difícil, para não dizer impossível, saber qual foi a primeira música que ouvimos na vida e quando isso se deu. É claro que não me refiro à canção de ninar que as mães cantarolavam quando éramos bebês de colo – até porque ninguém seria capaz de se lembrar disso.

O que me interessa é saber qual foi a primeira música que registramos por descuido, mas com tanta intensidade que se petrificou na memória da alma. Aquela música primordial que nos visita de vez em quando e nos arremessa ao passado, colocando-nos diante do menino de calças curtas que corre com os primos ao redor do sofá da sala.


1. Memórias da infância

Este menino sou eu e a sala tem o chão acarpetado em tom verde-musgo. Há um quadro na parede e nele se vê, pintada à óleo, uma porta marrom que se assemelha a uma barra de chocolate. A porta está entreaberta e por ela vaza um facho de luz tricolor (laranja, vermelho e lilás), psicodélico. Sob a tela, encostado na parede, há um toca-discos em ação: no prato, gira o vinil “A Arca de Noé, Volume 2”, contendo as canções infantis de Vinicius de Moraes.


A capa do elepê está negligentemente largada sobre a mesinha de centro, ao lado de um copo de refresco de groselha já pela metade. Lá fora anoitece e os adultos conversam e bebem cerveja apoiados no parapeito da janela. Nós, as crianças, corremos ao redor do sofá de feltro encardido, que parece feito do mesmo tecido pobre da cortina, enquanto a voz de Clara Nunes preenche toda a sala: “As coisas devem ser bem grandes/ Pra formiga pequenina/ A rosa, um lindo palácio/ E o espinho, uma espada fina”.


É possível que essa fotografia mental remeta a um fim de tarde entre 1981 e 1982, no interior da casa de muro branco e portão preto da rua Avelino Diz, nº 172, no Jardim Flamboyant, em Campinas.


É evidente que “A Formiga”, composição de Vinicius cantada por Clara, não foi a primeira que ouvi na vida. Pela lógica, ainda que o “A Arca de Noé, Volume 2” me desvirginasse os ouvidos naquele momento, a referida faixa não era a primeira do álbum: a abertura do lado A trazia um texto do poeta declamado pelo ator Dionísio Azevedo. “A Formiga” – uma marcha-rancho digna dos antigos carnavais – era apenas a quarta faixa do lado B. No entanto, trata-se da minha recordação musical mais antiga. Por quê? Não sei.


Sempre que ouço “A Formiga” revivo o dia da primeira audição – ou aquele que suponho ter sido o primeiro. Basta a introdução, com seus metais e sua caixa de guerra, para que eu volte à casa da minha infância e sinta de novo o perfume do pai impregnado nas páginas de um livro ou ouça o chiado da panela de pressão que vinha da cozinha, a mãe reclamando que havia colocado sal demais, o entrechoque metálico dos talheres prenunciando a hora do almoço.


Quantas memórias sensoriais pode conter uma simples cantiga infantil?


2. Memórias da adolescência

Cresci em uma família de classe média com algumas dificuldades financeiras, mas sem grandes privações. No início da década de 1990, tínhamos em casa um aparelho de som 3x1 da Phillips, mas música nunca foi a prioridade dos meus pais. Nas horas vagas, quando estavam juntos, preferiam ver algum lixo enlatado na TV. Eles não tinham muita vida social.


O Pai – Dos dois, meu pai era quem mais valor dava aos discos. Seu gosto musical, porém, não era muito amplo: girava, basicamente, em torno da discografia dos Beatles. Lembro-me dele sentado no chão da sala, camisa aberta, copo de cuba-libre de um lado, maço de cigarros de outro, assoviando distraído a melodia de “And I Love Her” enquanto namorava os encartes dos elepês. Era o seu ritual particular.

Se fecho os olhos e me concentro nesta lembrança, é o assovio do meu pai – e não a gravação do disco – o que primeiro me vem à mente quando penso nos Beatles. Era um assovio tão melancólico e autêntico que, para mim, meu pai ficou sendo um dos autores, ou pelo menos o arranjador, da canção de Lennon e McCartney.


O velho era tão beatlemaníaco que quase não gostava de outras coisas. Mas havia uma exceção: a música regional, mais especificamente a moda de viola e a música caipira. Sua incursão por esse universo era pontual e tais músicas tocavam no rádio do carro somente quando estávamos a caminho do pesqueiro que ele construíra na zona rural de Porto Ferreira, no tempo em que serviu no Exército.


São muitas as músicas “sertanejas” que marcaram as viagens em família. Lembro-me especialmente de uma vez em que saímos muito cedo de Campinas, na madrugada de um inverno rigoroso, e do quanto aquelas canções, que falavam do cheiro de mato e do ranger dos carros-de-boi, soavam aconchegantes.


Lembro que, nesse dia, vi o céu adquirindo tons rosados assim que o carro deixou o asfalto e ganhou a estradinha de terra que conduzia ao rancho. Lembro também do aroma mentolado que a neblina fria exalava por entre os corredores de eucaliptos. O amanhecer na roça parecia revestido por uma camada fina de nostalgia – e eu torcia para que a música não terminasse, porque o encanto poderia ser quebrado.


Na ocasião, o que tocava no rádio do Chevette verde metálico era “Mágoa de Boiadeiro”, interpretada por Sergio Reis: “Antigamente nem em sonho existia/ Tantas pontes sobre os rios/ Nem asfalto nas estradas/ A gente usava quatro ou cinco sinuelos/ Pra trazer o pantaneiro/ No rodeio da boiada”.


O berrante ao final dessa gravação evoca o interior de um país idílico e preservado dentro de mim. É doce a ilusão que ele me proporciona.


A Mãe – Minha mãe tinha uma relação estranha com a música. Sempre lhe foi indiferente. Não me lembro de vê-la colocar um disco por conta própria na vitrola. Quando estava ao volante (era exímia motorista), a indiferença virava irritação: ela proibia que os filhos ligassem o rádio do carro. Dizia que a música – qualquer música – a desconcentrava.


Assim, a música entrava nela por osmose: quando sentada à máquina de costura, deixava o radinho de pilha ao lado, sempre ligado em algum programa voltado para o público feminino, desses em que os locutores falam da vida dos artistas, leem cartas de ouvintes e tocam canções de amor.


Como é comum às costureiras, a mãe passava o dia imersa nesse mundo da canção popular romântica. Era possível que ela nem prestasse atenção no que ouvia. Curiosamente, o rádio que a desconcentrava no carro era o mesmo que parecia ajustar o seu foco no trabalho.


Até hoje sei de cor a letra das canções que vazavam de sua oficina e entravam pelos vãos da janela do meu quarto. Na adolescência, bebi na fonte do radinho de pilha – e por uma década meu espírito foi lapidado pelo bolero.


De todas as vozes que me chegavam, meio abafadas pelo ruído da máquina de costura, nenhuma remete tanto àquele tempo quanto a de Roberto Carlos. A voz anasalada do Rei povoa o meu imaginário juvenil tanto quanto a primeira paixão não correspondida ou as cartas de amor nunca enviadas.


Logo, qualquer música do Roberto quase sempre me pegará desprevenido e me fará ter saudade de tudo. Não é saudade boa; nem má. É apenas uma saudade que abre um túnel azul no meu peito e por ele sou sugado de volta à oficina de costura que ficava no quintal. Lá está a minha mãe, muito compenetrada, com uma agulha na boca esperando o momento certo de espetá-la na barra da calça.


Quero dizer algo, mas não consigo. Abro a boca e dela sai apenas o eco do grito daquela manhã em que acordei de um pesadelo, banhado em pânico, achando que a ambulância que passara na rua de trás – a sirene berrando desesperada – levava a minha mãe para algum lugar longe de mim.


Saltei da cama correndo e, ao chegar na oficina, ela estava lá. Ela estava lá, sentadinha em meio aos tecidos e aos carretéis de linha. Nesse exato instante, Roberto Carlos começa a cantar “O Portão” e sou tomado por uma paz interior que jamais tornei a sentir, mas que vislumbro nos versos da canção: “Eu cheguei em frente ao portão/ Meu cachorro me sorriu latindo/ Minhas malas coloquei no chão/ Eu voltei...”


Em seu leito de morte, trinta anos depois, minha mãe se reconciliaria com a música: pela primeira vez na vida, aos 69, tomou a iniciativa e pediu para ouvir algo no celular. “O que você quer ouvir, querida?” Era “Mulher de 40”, do Roberto (uma escolha que surpreendeu a mim e ao meu irmão, pois não sabíamos que ela conhecia ou gostava da composição).


Foi a última música que a mãe ouviu antes de ser entubada – e, para mim, a canção está morta e enterrada com ela. Nunca mais conseguirei ouvi-la.


O Avô – Meu avô paterno era um homem culto, de hábitos discretos e polidos. Em sua casa, um sobradinho localizado na Rua Sacramento, nº 1066, no centro de Campinas, havia um escritório onde o velho, já aposentado do serviço público, passava horas escrevendo à máquina, lendo ou ouvindo a sua coleção de elepês com os olhos claros no vazio.


Infelizmente, nossa convivência foi interrompida em 1993. Sua morte se deu no momento em que a música apenas começava a se revelar para mim. Penso na falta que me fez a sua orientação, a sua escuta atenta, sobretudo no dia em que abri a caixa que ele deixou para mim como herança.


De fato, em seu testamento, havia descrito: “Meus livros e discos, bem como a máquina de escrever, deixo ao meu neto Bruno”. Nunca saberei o que o levou a deixar para mim – e não para outro neto – a sua coleção de elepês. Talvez por ter visto algo que eu próprio não vira em minha personalidade?


As recordações mais antigas que trago do avô vêm das noites de Natal em sua casa. Era de praxe que colocasse sempre o mesmo disco na vitrola, para celebrar a ocasião junto dos filhos e dos netos: “Natal em Alto-Mar”, de um cantor austríaco chamado Freddy Quinn.


Tenho até hoje este elepê e só não o guardo em um cofre porque não há cofre em minha residência. Na capa do álbum ainda estão as digitais do avô – e quando o ouço, geralmente em dezembro, sinto na boca a acidez do vinho rosé que meus primos e eu tomávamos quando os adultos não estavam vendo. Era a nossa bebida natalina por excelência.


“O Tannenbaum”, na voz oceânica de Freddy Quinn, ainda ecoa nos cômodos vazios do sobradinho da Sacramento, hoje em ruínas. Na hora neutra da noite ainda posso ouvir o tilintar das taças, o solo do acordeão costurando a música, o avô fingindo cantar em alemão.... Nunca mais vivi ceias de Natal como aquelas! Sem a voz de Freddy Quinn, as lembranças seriam as mesmas? Teriam a mesma vivacidade?


Apesar de me comoverem feito o diabo, não são as músicas natalinas o grande legado deixado por meu avô. O meu despertar para a música – e para o mundo – se deu numa tarde qualquer em que, com saudade do velho, puxei da caixa um disco aleatório da coleção que herdara. Era um elepê de Dorival Caymmi, parte integrante da série “História da Música Popular Brasileira”, lançada pela Editora Abril em 1970.


O álbum, de capa preta, trazia a foto do compositor sentado num chão de caquinhos, o violão colado ao peito nu. O impacto que a arte gráfica do disco me causou, incluindo a do encarte, foi arrebatador. O álbum, na verdade, era uma revista ilustrada que contava a história do artista e as histórias das composições. As fotografias e ilustrações eram um show à parte.


Esse disco, como objeto físico, moldou o meu senso estético. Mas nada se compara ao que me causou quando depositei a agulha pela primeira vez na faixa “O Vento” e a voz de Caymmi fez vibrar as caixas de som: “Vamos chamar o vento.../ Vamos chamar o vento...”


E depois o assovio, que me percorreu como corrente elétrica. O assovio de Caymmi chamava o vento para dentro do meu quarto. A voz tinha um quê de ancestral e a canção algo de primitivo que a tornava tensa, misteriosa e bela. Só Deus sabe quantas e quantas vezes ouvi “O Vento” deitado na cama, de olhos fechados no escuro, deixando-me possuir pela brasilidade de seus versos e acordes.


Foi Caymmi quem me levou a Ary Barroso; e este a Noel Rosa – que, por sua vez, me apresentou a Cartola e Nelson Cavaquinho. Só depois vieram Chico Buarque e Caetano Veloso. Tom Jobim e João Gilberto. Sergio Ricardo e Geraldo Vandré. Paulinho da Viola e Dona Ivone Lara. João Bosco e Aldir Blanc. E, com todos eles, o Brasil e a noção de pertencimento que só a cultura é capaz de nos dar.


Comecei pela base por obra do acaso e às vezes me pergunto se meu gosto musical mais profundo seria outro se, ao invés de puxar do fundo da caixa o álbum de Caymmi, eu tivesse fisgado um disco do Duke Ellington. Ou, pior, do Richard Clayderman.


A Rua – Na rua tive um contato mais visceral com a música. Fora de casa, ela ditava o ritmo dos moleques e das minas do bairro – e comigo não era diferente. A rua era o palco das minhas andanças e elas tinham fundo musical.


Hoje valorizado, após gradativo processo de gentrificação, o Jardim Flamboyant da minha época era um bairro de classe média-média e média-baixa, com hábitos suburbanos tais como: cadeiras na calçada, vira-latas boêmios, crianças criadas na rua, igrejas evangélicas e terreiros de candomblé convivendo lado a lado, bailinhos nas garagens, ponto de tráfico na praça, mendigo de estimação, céu apinhado de pipas, tênis velhos pendurados nos cabos de energia elétrica, cultura baloeira, campinhos de várzea lotados aos sábados e domingos – os moleques do Buraco do Sapo, favela próxima, misturados aos “playboys” (não éramos ricos, longe disso, mas o status social dependia do ponto de vista de quem olhava para aquela verdadeira pororoca).


Cresci nesse ambiente, gozando de uma liberdade com que nenhum adolescente de prédio jamais poderia sonhar. E quando rememoro os tempos de “moleque de rua”, as lembranças vêm sempre acompanhadas por uma trilha sonora. As músicas que embalaram o meu tempo de rapaz estão vivas e reluzem na memória como moedas de ouro sob o sol.


Quantas delas moldaram o meu jeito de ser? Prefiro pensar que não foram as músicas que me forjaram, mas as experiências vividas naquele período de grandes descobertas. As músicas apenas ajudaram a tatuar aquela fase na mente; ou seja: se hoje me lembro de certos acontecimentos banais é porque eles vêm acompanhados de músicas.


Identifico três “escolas musicais” fundantes do meu ser entre os 13 e os 17 anos – e aqui me refiro somente ao som que me chegava da rua: o braço musical do movimento hip hop; os cânticos sagrados dos terreiros; e o pagode que a turma fazia depois das peladas.


O som do hip hop – Quando criança, na década de 1980, a febre no bairro era o breaking (ou simplesmente break) – dança de rua criada no Bronx e exportada mundialmente pelos negros norte-americanos. Eu também quis dançar como os garotos do gueto que frequentavam a quadra de basquete da praça, mas nunca tive a desenvoltura necessária para girar feito um helicóptero com a cabeça apoiada no chão.


Abandonei de vez as pretensões de dobrar o esqueleto feito borracha quando cheguei na adolescência. Então, o que saía das caixas de som passou a me interessar muito mais do que os campeonatos de dança ao ar livre. Antes dos Racionais, quem primeiro despertou a molecada do meu lugar foi Thaíde e DJ Hum.


Esses caras foram um acontecimento: todo mundo ouvia; era uma questão de honra e de identidade para quem morava no bairro. E a parada era séria, não tinha meio termo: se você fosse jovem no Jardim Flamboyant, entre 1988 e 1995, gostar de Thaíde e DJ Hum era item obrigatório no currículo. Se você não gostasse, irmãozinho e irmãzinha, alguma coisa estava errada.


Quem tinha carro, estacionava na beira do campinho de terra, abria o porta-malas turbinado e metia Thaíde e DJ Hum no volume máximo. Nisso, as minas iam colando também, cheias de procedimento, o fumacê da erva pairando sobre os barrancos da pracinha como as nuvens tóxicas de Cubatão – que na época era a cidade mais poluída da América Latina.


A minha onda era o futebol. Eu estava lá pela bola, essa é a verdade. Não fumava, não dançava, não namorava e não tinha carro; só queria saber de fazer gols. E nem isso eu fazia muito bem, pois era médio-volante e, depois, goleiro.


Passei grande parte da adolescência no campo da praça Omar Cardoso e, se hoje tenho a consciência de que o futebol me fez um homem de caráter, também sei que sem o fundo musical de Thaíde e DJ Hum a minha breve “carreira” futebolística teria sido bem menos excitante e transformadora.


Até há pouco tempo, quando voltava ao bairro para visitar a minha mãe, bastava passar gingando pela praça e uma música começava a tocar dentro da cachola: “A lua já ilumina a rua escura/ E a verdade nua e crua é que a noite vem chegando/ E os demônios saem de casa/ Pois a noite é a brasa/ Que eles estavam esperando”.


“Noite”, de Thaíde e DJ Hum, me enchia de coragem ao andar pelas madrugadas erráticas do bairro, quando só os malandros sabiam onde havia uma festa acontecendo ou uma birosca aberta com mesa de sinuca. Às vezes a noite terminava no Buraco do Sapo, onde Thaíde e DJ Hum eram deuses.


Para onde foram os manos e as minas que se sentavam nos barrancos do campinho para fazer a cabeça ouvindo rap? Os que dançavam break na quadra de basquete? As crianças que faziam guerra de mamona na praça? As velhas que colocavam as cadeiras na calçada quando o sol se punha? Hoje as noites do Jardim Flamboyant estão mergulhadas em silêncio pequeno-burguês. Já não se ouvem sequer os tambores sagrados dos terreiros.


O som dos terreiros – No meu tempo de criança, uma das maiores preocupações da Igreja Católica no Brasil era barrar o crescimento das religiões afro-brasileiras nas camadas populares. Os evangélicos neopentecostais já estavam na área, mas ainda não haviam se alastrado feito capim-gordura em cemitério. Sem alarde, os pais e mães-de-santo comiam pelas beiradas.


Quem perambulava pelo Flamboyant com a Bíblia na mão era um casal de Testemunhas de Jeová e um pastor que usava sapatos sem meias e tinha fama de “pederasta” (era assim que se referiam a ele no bar da esquina). Na igreja desse pastor, de vez em quando, passavam uns filmes bíblicos – e a gente ia assistir porque era de graça. O bairro era dos crentes, é verdade; mas era também dos “macumbeiros”.


Na véspera do dia de São Cosme e Damião, criança nem dormia direito, pois na manhã seguinte os centros de umbanda distribuíam doces à vera. Era comum que depositassem saquinhos de papel cheios de guloseimas nos pés das árvores, forçando a molecada a sair em massa em busca de balas, suspiros e pirulitos.


Na rua lateral da praça Omar Cardoso, próximo ao campo de futebol, havia um terreiro de candomblé. Perto de casa, na ruazinha em declive que dava na favela, havia outro. Nas noites em que os orixás, caboclos e exus desciam, os atabaques ressoavam de vários outros pontos do mapa – e eram como tochas acesas guiando os meus passos.


Conheci quase todos os terreiros e passei a me conhecer melhor por causa deles. Não exatamente pela fé, mas porque a musicalidade do xirê me fascinava e me enchia de espantos e arrepios. Ter tido a oportunidade de frequentar esses espaços sagrados me abriu para sempre os ouvidos, a mente e o coração.


Na faixa “Festa de Candomblé”, do álbum “Novas Palavras”, Martinho da Vila sintetiza, em uma série de zuelas, as sonoridades que fizeram a minha alma atravessar o Atlântico em muitas noites de gira. Sou reportado para lá quando a ouço com essa intenção.

É bom que se diga: antes de conhecer o disco, conheci os atabaques. E eles são o ponto de partida de tudo o que penso e faço quando o assunto é canção popular.


O pagode – Por fim, mas não menos importante, fui marcado a ferro quente pelo pagode que a rapaziada fazia após as peladas de sábado. Geralmente a roda era formada espontaneamente no bar da esquina, assim que acabava o último jogo da manhã e o cheiro do carvão em brasa nos alcançava na metade do caminho.


Esse encontro, contudo, não dependia de um lugar específico para acontecer: quando a partida era no campo do Parque Brasília, ou no Buraco do Sapo, o samba rolava do mesmo jeito. Não havia futebol sem batucada.


Pelas mãos dos rapazes mais velhos aprendi a distinguir o cavaquinho do banjo; o tamborim do pandeiro; o tantã do repique de mão. Aprendi o que era partido-alto e o que era samba-enredo. Aprendi a reconhecer os sambas de Bezerra da Silva, Jovelina Pérola Negra, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Arlindo Cruz e Sombrinha... E também a aceitar que o pagode mela-cueca, que estava em voga naquele momento, também era samba. Como não?


Os canalhas que me introduziram no batuque, deixando-me compartilhar de sua mesa, nunca souberam e nem saberão que foram os meus salvadores. Charuto, Hélio Japa, Odair, Jamil e Zoião são nomes de santos – e cada qual traz uma auréola sobre a cabeça.

O hino religioso que eles entoavam na missa pagã dos sábados era “Raça Brasileira”, samba que Elaine Machado gravou no elepê homônimo: “Eu sou barro/ Eu sou chão/ Eu sou pó/ Eu sou poeira/ Sou filha desse torrão/ Eu sou a raça brasileira”.


Tendo autorização da malandragem para cantar esse verso nas rodas, tirei meu passaporte para o mundo adulto.


3. Memórias da juventude

A transição da juventude para a idade adulta foi o tempo de aprofundar a bagagem musical trazida da adolescência, sobretudo na adesão ao samba como meio de existência: a forma com que vejo o mundo e trato as pessoas; os lugares por onde ando; como rezo; o que como; o que bebo; o que faço da vida. Tudo em mim está subordinado à cosmogonia do samba.

O samba me permitiu fazê-lo e a ele sou eternamente grato. Quando estive desempregado, o samba me salvou: durante um ano e meio, sem nunca ter sido músico, consegui pagar o aluguel vivendo exclusivamente das rodas de samba que promovia ao lado de um amigo violonista. Nessa época dividíamos um apartamento no centro da cidade.


No apê do Largo das Andorinhas, colado ao Beco do Inferno, onde morei nos anos de faculdade, recebi todos os músicos de Campinas e alguns artistas de fora – certa vez hospedei Lanny Gordin, o guitar hero brasileiro que definiu a sonoridade tropicalista dos discos da Gal, do Gil e de tantos outros.


Depois da meia-noite, quando os ônibus paravam de circular e o dinheiro não chegava para o táxi, era para o meu muquifo que os músicos iam em busca de um último gole e de um sofá para esticar as pernas. Foram anos em que praticamente não dormi; mas eu faria tudo de novo.


Quando não havia visita em casa, as noites eram dedicadas à boemia no sentido estrito do termo. Flanava pela cidade com um amigo argentino que me apresentou as canções dos cubanos Silvio Rodriguez e Pablo Milanés; com ele fui a lugares onde poucos se aventurariam: íamos a bares inóspitos no fim da madrugada, pelo simples prazer de tomar uma cerveja ao lado de uma jukebox especializada em música brega; entrávamos em festas de desconhecidos, sem sermos convidados, só porque a música que ouvimos da rua nos pareceu convidativa; passávamos horas a fio nos sebos do centro, vasculhando os discos usados atrás de raridades; estávamos em todas as rodas de samba – às vezes em duas delas ao mesmo tempo, segundo reza a lenda.


A trilha sonora desse período é uma playlist de sambas de todos os estilos, com ênfase nas composições de Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro e do meu letrista favorito, Aldir Blanc; nas gravações caseiras das velhas guardas das escolas do eixo Rio-São Paulo, que estavam sendo redescobertas pela juventude; nos ritmos conscientemente negros de Candeia, Wilson Moreira e Nei Lopes; por fim, na discografia completa de Clara Nunes, verdadeiro tratado sobre o povo brasileiro.


Faculdade: a primeira entrevista que fiz na vida foi logo com Paulinho Nogueira, após seu concerto num festival de música instrumental na PUC de Campinas – evento que também contou com a participação de Hermeto Pascoal. A entrevista rendeu um bom texto para o jornalzinho da classe e me encheu de certezas: eu seria jornalista para escrever sobre gente como Paulinho Nogueira.


Na noite do festival, estava comigo uma colega de turma que era cantora e me fez prestar atenção em coisas que eu ainda não havia assimilado muito bem: o choro, o jazz, a bossa nova, Ivan Lins e Djavan, entre outras. Eu ouvia atentamente tudo o que ela me gravava com esmero em fitas k7. Depois era eu quem gravava fitas para ela, repletas de músicas carregadas de segundas intenções: “Lindeza”, do Caetano; “Futuros Amantes”, do Chico; “Ilusão à Toa”, do Johnny Alf... Nunca passou disso.


Fiz amigos improváveis nos intervalos das aulas. Pessoas que, se não fosse a música, talvez não se encontrassem por aí: um que era do samba; outro que só gostava de rock; outro que sabia tudo de jazz; outro, mais velho, que preferia a música erudita; e um outro, mais excêntrico, que ouvia e tocava flamenco.

Foram milhares de músicas cantadas nos bancos da lanchonete, composições que se perderam na mesma tarde, discos e textos compartilhados, espetáculos de teatro musical escritos em conjunto, debates acalorados sobre quem de nós teria participado da marcha contra a guitarra elétrica na ditadura. Por causa desses vagabundos, deixei de assistir muitas aulas. Aprendi mais com eles.


Paralelamente ao universo do samba, resquícios da angústia existencial da adolescência me levaram à obra de Belchior – que me foi apresentada por um professor de Literatura, meu mestre maior. Curiosamente, este professor morreria pouco após a morte do compositor de que tanto gostava.


Depois de tanto tempo, sigo ouvindo “A Palo Seco” com os ouvidos de antes: “Se você vier me perguntar por onde andei/ No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos lhe direi/ Amigo, eu me desesperava”. Ouvir esta canção é como ver o mar: para sempre é como se fosse a primeira vez.

Ela remexe conchas e detritos enterrados em meu peito, bagunçando tudo de novo e me fazendo crer na revolução. Abro a janela e grito quando o carro passa, como naquela outra canção de Belchior: “Amigos, onde estão vocês?!?”


Nós prometemos que a música nos uniria até o fim, mas o tempo dos simples mortais não é o mesmo tempo dos compositores. Pelo menos nas canções, permanecemos sãos e salvos do mundo vil que nos divide e separa.

Cada faixa do elepê “Alucinação” é uma rua em espiral que me leva para o mundo que idealizei quando jovem – e onde ainda me encontro em alguma dobra do tempo, filosofando em boa companhia nos bares que se recusavam a descer as portas.


Discos, canções, pessoas, lugares.... Sou feito das coisas que vivi. Tudo vive em mim – e continuará a viver enquanto houver música e memória.



Algumas músicas citadas no texto


A Formiga

Compositores: Paulo Soledade / Vinicius de Moraes

Intérprete: Clara Nunes

Álbum: A Arca de Noé, Volume 2 (1981)


And I Love Her

Compositores: John Lennon / Paul McCartney

Intérprete: The Beatles

Álbum: A Hard Day’s Night (1964)


Mágoa de Boiadeiro

Compositores: Nonô Basílio / Índio Vago

Intérprete: Sergio Reis

Álbum: Mágoa de Boiadeiro (1978)


O Portão

Compositores: Roberto Carlos / Erasmo Carlos

Intérprete: Roberto Carlos

Álbum: Roberto Carlos (1974)


O Tannenbaum

Compositor: Tradicional

Intérprete: Freddy Quinn e Orquestra Wolfgang Rödelberger

Álbum: Natal em Alto-Mar (1966)


O Vento

Compositor: Dorival Caymmi

Intérprete: Dorival Caymmi

Álbum: História da Música Popular Brasileira, Volume 3 (1970)


Noite

Compositores: Thaíde e DJ Hum

Intétpretes: Thaíde e DJ Hum

Álbum: Humildade e Coragem São Nossas Armas Para Lutar (1992)


Festa de Candomblé

Compositores: Tradicional – Adpt. por Martinho da Vila

Intérprete: Martinho da Vila

Álbum: Novas Palavras (1983)


Raça Brasileira

Compositores: Elaine Machado / Mathias de Freitas / Zé do Cavaco

Intérprete: Elaine Machado

Álbum: Raça Brasileira (1985)


A Palo Seco

Compositor: Belchior

Intérprete: Belchior

Álbum: Alucinação (1976)



Bruno Ribeiro é jornalista e compositor.

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1 Comment


Marcel Cheida
Marcel Cheida
Apr 07, 2023

Texto maravilhoso. Bruno tem atributos de excelência para escrever. Memórias moldadas pela elevação estética.

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