Sons de Liberdade
Por Ernani Teixeira
Depoimento sobre a criação de um espetáculo
"These songs invigorate the movement in a most significant way: these freedom songs have served to give unity to the movement." - Martin Luther King Jr. sobre as melodias associadas ao Movimento pelos Direitos Civis.
"As music of rebellion and symbol of cynicism, these songs have emerged as an outlet for voicing the frustrations of youths and placing greater emphasis on freedom and liberty." - Al-Deen sobre as raï argelinas.
Antes mesmo de falar, nossos ancestrais já cantavam manifestando seus sentimentos e se comunicando, conforme atesta a primatologia. A música sempre foi um dos veículos mais poderosos para a expressão da natureza humana, sendo a liberdade um dos mais fundamentais direitos estabelecidos no âmbito do que compreendemos como a civilidade. Em tempos de crise social e conflitos quando o embate não se atém apenas às ideias mas chega às ruas e vias de fato, não é apenas com violência e armas que a liberdade é defendida, mas também - e muito poderosamente - com a força da arte, particularmente da música, que ao dar voz aos sentimentos das pessoas, as une nessa emoção inspirada pela poesia das canções que nomeiam seus ideais em comum, elevam suas vozes na melodia e as fazem prosseguir em frente no andamento de seu compasso ou até mesmo nos passos de sua dança.
Ao longo da História da Humanidade, em muitas culturas e diferentes épocas, observamos recorrentemente episódios notáveis de como a música esteve presente em momentos críticos da sociedade. O registro mais antigo que se tem da relevância da expressão musical no cômputo político remonta à China dos séculos 11-8 AEC quando a corte da Dinastia Zhou, reconhecendo o valor das canções populares como uma fonte segura da expressão do cidadão comum, promoveu a recolha e compilação de odes populares dos seus territórios para estabelecer uma espécie de termômetro da satisfação social no que ficou conhecido como as "Árias dos Estados", o primeiro dos seis livros consagrados como o maior clássico da poesia chinesa, o Livro das Odes, sendo também o documento mais antigo que se tem de canções de protesto e de cunho satírico.
Na fronteira entre a Ásia e a Europa, as raízes da música de protesto turca remontam aos aşıks da Anatólia do século 16, mas o primeiro registro ocidental europeu de música de protesto talvez seja ainda anterior: a canção "The Cutty Wren" cantada durante a revolta dos camponeses ingleses de 1381 contra a opressão feudal é reputada como a primeira expressão musical folk de revolta, assim como as célebres baladas do século 14 exaltando as façanhas de Robin Hood manifestam o anseio por justiça social. Já no século 17, no período da Guerra dos Três Reinos, as inflamadas canções dos movimentos britânicos como Diggers e Levellers propõem explicitamente a deposição dos gentries enquanto clamam por poder para o povo como em "The Digger's Song".
Vivendo na pele
Minha infância e começo da adolescência, anos do começo de minha formação musical como violinista, se deu em circunstâncias muito particulares: tendo uma severa educação protestante, meu pai foi um eminente pastor batista durante o período final da ditadura militar no Brasil em plena Guerra Fria, quando essa denominação evangélica tinha na Convenção Sulista dos EUA seu norte, no espírito ainda da política de boa-vizinhança em termos de alinhamento ideológico. A essa espécie de americanismo mais ou menos hegemônico então, ajunte-se o fato de que a ambiência um tanto elitista do ensino de música clássica em Curitiba certamente não colaborou para que eu tivesse - além da experiência dos hit parades das rádios - muito contato com dois universos musicais relativamente básicos na formação afetiva de grande parte da juventude da minha geração: o rock e a MPB. Uma vez estabelecidas essas ressalvas, preciso confessar que até alguns anos atrás eu nunca havia sido muito capturado pelo repertório das canções de protesto ou mesmo dos festivais de canção.
Jamais tive nenhuma dúvida em relação à importância e relevância cultural dessas músicas, e sempre entendi totalmente o quanto elas são portadoras de sentidos e certamente associadas afetivamente a tantas memórias e sentimentos para as pessoas que viveram de perto os conflitos sociais a elas relacionados - como, por exemplo, tantas pessoas que viveram na pele (literalmente) aqui no Brasil - ou fora dele - aqueles terríveis anos de chumbo. Mas, como, pelas circunstâncias a que me referi, eu não atravessei aquele período de maneira tão consciente nem dolorosa, minha avaliação estética não tinha de fato as referências que completam a experiência de apreciar essas canções devidamente.
Somente desde que nosso país começou a sucumbir no vórtice de brutalidade sobretudo de 2018 para cá é que eu comecei a ter uma noção um pouco mais realista do valor dessas músicas. Com a escalada da violência, a sistemática destruição da cultura, o total desprezo pela arte e o culto do embrutecimento, foi só quando eu me encontrei totalmente prostrado de adoecimento emocional, imerso numa realidade até então desconhecida em que o próprio corpo passou a funcionar de uma maneira totalmente diferente, que fui então remotamente começar a me dar conta do que significou décadas atrás escrever versos e melodias em meio ao terror e à violência pelo que tantos artistas foram reprimidos, presos, escorraçados, silenciados e até mesmo mortos.
Qualquer análise estética que se baseie apenas em critérios meramente formais ou quantitativos sem levar em conta o contexto social e as comoções afetivas que ele porta jamais dará conta de avaliar com propriedade a totalidade do efeito artístico das obras tópicas que justamente se engajam como expressão desses momentos. O que significa para um artista que, vivendo uma barbaridade daquelas, num inferno absoluto de tristeza, no meio da dor, do medo, ter a força de escrever sobre alegria, ter a pujança do ato artístico de criar beleza como gesto poderoso de resistência contra a feiura, ter a força estética de reafirmar a vida mesmo cercado pela morte - a ponderação disso tudo me fez revisitar todo o nosso cancioneiro de protesto e escutar tudo de novo, com um outro ouvido que eu de fato nunca tivera antes.
Consonâncias de timbres diferentes
Vindo de uma formação evangélica fundamentalista de orientação norte-americana, o jazz acabou sendo para mim então a linguagem mundana mais natural para o processo da legitimação da minha autonomia moral em relação que aquele sistema de valores tão excludentes: a maneira de dizer 'sim' à vida à qual a religião dissera tanto 'não'. De fato, o jazz nasceu justamente do congraçamento e cooperação entre as diversidades culturais, quase sempre majoritariamente de excluídos socialmente, de uma maneira que em muitos aspectos guarda semelhanças com o nascimento do choro e do samba aqui no Brasil.
De certa forma, uma jam session de jazz, assim como uma roda de chorões, é até hoje um exercício rico de democracia, no sentido de que para que essas formas de arte improvisada sejam possíveis de serem desempenhadas é necessário que todos se ouçam atentamente, se esforcem por compreender o outro e dialogar com ele negociando suas agendas particulares para que resulte assim em algo coeso, harmonioso e, no fim das contas, produtivo e prazeroso para todos os envolvidos. Independente da origem de cada um, espera-se justamente que, a partir de uma intenção de expressão conjunta, cada um colabore com o que tem a oferecer a partir de seu patrimônio pessoal de riquezas subjetivas a partir de sua própria história, aprendizados, experiências e personalidade.
Trabalhando como músico de jazz e sendo violinista, minha referência primordial não poderia ser outra senão o francês Stéphane Grappelli, praticamente o patrono do estilo ao violino. Stéphane Grappelli foi parceiro musical do célebre cigano Django Reinhardt à frente do Quinteto do Hot Club de France que fez sucesso na Paris dos anos 30, inaugurando oficialmente o estilo que veio a ser conhecido como jazz manouche ou gypsy jazz: em lugar dos instrumentos de sopros do jazz americano (como sax e trompete) e também dos tambores e pratos vindos todos das marching bands militares, o jazz manouche usava respectivamente como melodista o violino e como percussão as batidas da marcação rítmica dos violões ciganos; ao invés do pesado piano dos cabarés de New Orleans, o jazz manouche usava o acordeon, mais adequado à mobilidade nômade dos acampamentos. Além de reciclar melodias europeias de salão e acolher a produção contemporânea de chansons, o jazz manouche produziu um significativo repertório próprio e traduziu ao seu sotaque os standards do jazz americano que desembarcara na Europa nas primeiras décadas do século 20 na bagagem de soldados e socialites.
Após o crash da Bolsa de Valores de 29, com o advento da Grande Depressão, o jazz americano produziu o estilo swing que, num cenário de absoluto empobrecimento e ausência de perspectivas, servia de válvula de escape social diante da miséria. As pessoas não tinham o que colocar no prato de comida, e, ainda assim, vestiam seu melhor traje para ir dançar no Savoy, no Ritz (a expressão 'puttin' on the Ritz' vem daí: 'se arrumando pra ir ao Ritz' [mesmo que sem condições] - e, por extensão, 'fazendo o possível pra ficar impecável com o que der'), e em tantos outros ballrooms onde as big bands de swing tocavam, pra realmente tentar esquecer a miséria da vida e erguer o moral.
O swing caiu no gosto e foi cultivado por todas as classes, mas por diferentes razões - enquanto os ricos achavam 'chique e exótico' ter em seus animados salões de soirées dançantes e clubes aquela música 'selvagem' e moderna, os pobres (aí incluídos justamente os músicos que as executavam) se identificavam com seus valores. Josephine Baker foi um símbolo dessa dicotomia: uma mulher, negra, incrivelmente bem instruída e inteligente, que se tornou célebre por seus elaborados shows de dança de topless com uma minissaia de bananas atendendo assim a esse apetite pelo 'exótico/selvagem', mas que ao mesmo tempo se tornou justamente uma das heroínas da Résistance Française por sua intensa atuação em prol da proteção aos oprimidos.
Nasce uma contracultura
Com a assinatura do tratado de Vichy e sob a ocupação nazista na Segunda Guerra, a França viveu um período de austeridade de consumo e fomento de uma mentalidade moralista e produtivista na tentativa de direcionar a sociedade para o esforço de guerra auxiliar às forças alemãs, forjando uma mentalidade radicalmente embrutecedora tanto nos mais idosos quanto mais jovens em que até mesmo o racismo e a xenofobia eram parte dos valores.
Com os clubes fechados e os bailes tendo sido proibidos, surgiu um movimento de jovens que se posicionaram radicalmente contra o status quo, promovendo sessões de discotecagem de álbuns de swing, ao som do qual dançavam e confraternizavam. Por conta do quanto cantarolavam publicamente o refrão 'Zaz Zuh Zaz' da canção gravada pelo performático band leader americano Cab Calloway, esses jovens começaram a ser chamados de zazous, e foram assim o primeiro fenômeno de contracultura urbana - de certa maneira pais dos beatniks, hipsters, hippies, punks e até mesmo do movimento disco e dos DJs.
Enquanto o esforço de guerra colaboracionista promovia campanhas bizarras como incentivar o uso de modelagens com menos tecido pela moda ou até mesmo a doação de cabelo cortado para a produção de calçados e uniformes para a guerra, os zazous faziam então questão de usar os cabelos longos e trajes oversized inspirados no jaquetão Zoot Suit trespassado com suas largas ombreiras e comprimentos extravagantes, bem como sapatos de solas grossas de borracha.
Enquanto a juventude fascista francesa organizava suas marchas fardadas pelos bulevares, os zazous tocavam pelas redondezas a todo volume seus discos de música dançante, sendo o swing manouche de Django nada menos do que a epítome do que os nazistas consideravam como arte degenerada uma vez que se tratava basicamente uma música criada por negros e mestiços, produzida e gravada por judeus - e que na França tinha como ícones os músicos ciganos (embora tocasse nos clubes da Champs-Élysées, Django fazia questão de continuar morando nos acampamentos de seu povo nos arredores da cidade)!
Num tempo em que os ânimos se enchiam exaltando valores como pátria, raça e nacionalidade, insistir em manter o modo de vida cigano e se assumir como tal era absolutamente degradante para a mentalidade fascista. Isso, que os fascistas viam como uma recusa inaceitável em abraçar o que eles consideravam seus valores de ordem, sempre foi para os ciganos, contudo, a recusa em se limitar a eles: assim como para os ciganos sua pátria sempre foi a estrada, para o músico de jazz o irmão é aquele com quem toca junto, aquele com quem a gente compartilha a música do mesmo jeito como se divide o pão.
Uma das curiosidades mais bizarras em torno do sucesso do jazz dos anos 20-30 é que mesmo tendo sido tão condenado oficialmente pelo governo nazista, a animação e a riqueza desse som eram tão contagiantes que mesmo os próprios nazistas não apenas não conseguiam evitar que a população ouvisse como até mesmo que, eles mesmos, secretamente, apreciassem. A maior ironia está no fato de que alguns temas que foram consagrados no jazz não apenas foram escritos por compositores judeus como Gershwin, Irving Berlin, ou interpretados na França por grandes artistas judeus como Mel Tormé e André Previn, mas que até mesmo grandes hits eram originalmente sequer standards de jazz mas melodias autenticamente judaicas como "Bei Bir Bistu Shein" (sucesso klezmer do teatro yídiche de Nova York) que, por causa da pronúncia diferente, os alemães acreditavam ser autenticamente germânica de algum dialeto obscuro, e continuavam apreciando e até mesmo regravando com sua 'banda oficial' de swing germânico de propaganda.
Coco Schumann, o jazzman que sobreviveu tocando em Auschwitz. Clique aqui e conheça mais sobre essa incrível história contada por Ghetto Swinger
Quando os judeus de Paris passaram a ser marcados pela obrigação de portar estrelas amarelas na roupa, os zazous confeccionaram estrelas semelhantes para si nas quais bordavam palavras como swing ou zazou. Numa época em que defender as minorias oprimidas e mesmo se identificar com elas representava um risco de vida tão grave, os zazous foram muito além de uma mera leviandade como simplesmente ouvir jazz e dançar enquanto a guerra seguia lá o seu massacre.
A partir das campanas dos gramofones e autofalantes das vitrolas, os violões e violinos de ícones como Django e Grappelli, a poesia de Charles Trenet, o humor de Johnny Hess e outros tantos inspiravam as pessoas não só a atravessar as agruras de todo aquele grande embrutecimento social como também até mesmo a resistir, acreditando numa vida em que a diversidade da cor da pele, da origem social ou da etnia não determinam a exclusão de ninguém, mas, pelo contrário, enriquece e vivifica ainda mais a experiência incrível que é poder produzir beleza juntos. Uma das coisas mais poderosas que a arte pode fazer é comover a gente a se humanizar mais, a ter mais empatia.
Harmonia de dissonâncias
Desde o início de meu trabalho há mais de 20 anos com o Hot Jazz Club - grupo pioneiro no Brasil na linguagem jazz manouche - sempre mantive bem clara a vocação da banda em apresentar não apenas o repertório de referência do estilo mas também nossas versões de grandes pérolas do cancioneiro nacional que, há muito tempo, já entendíamos como tendo tantos elementos em comum com o repertório jazzístico dos anos 30 em termos de sinuosidade da melodia ou estrutura. Embora o jazz enquanto linguagem seja mais comumente associado à complexidade harmônica, o swing via de regra se apoia sobre poucas e relativamente convencionais progressões. Justamente a simplicidade tantas vezes ainda mais elementar de grande parte das - senão das mais representativas - canções de protesto era algo que em minha juventude me fazia subvalorizar ambas expressões musicais.
Foi necessário viver 'de dentro' minimamente uma situação semelhante em que o estado de depressão social é tanto que mesmo nossas forças criativas vão se atrofiando pela ausência de perspectiva, para entender que momentos diferentes requerem também estéticas diferentes: se, por um lado, em tempos de vivacidade intelectual e abundância cultural temos a oportunidade de nos desafiar a expandir limites semânticos da arte, temos tempo para nos permitir devanear acompanhando uma ideia percorrer o imprevisto desenho de seu inaugural caminho perante nossos olhos ou apreciando a sequência inusitada das mais surpreendentes harmonias, por outro lado, em tempos que a tristeza e a desesperança parecem nos oprimir de maneira tão paralisante talvez o passo simples 1-2 do samba ou da marcha, talvez a harmonia reduzida de até mesmo apenas dois acordes seja assim a medida mais adequada sobre a qual conseguimos assim apoiar o movimento alternado de nossos dois pés, passo a passo, nos incentivando a continuar seguindo em frente, caminhando pelas ruas ou dançando onde quer que seja. Talvez seja mesmo importante em tempos difíceis assim ter músicas de dois acordes que nos ajudem a resistir a eles e superá-los para que sejam possíveis novos tempos com mais acordes; talvez em um tempo seja necessária a música do caminhar para que um dia seja possível novamente a da contemplação.
Assim, por um lado, foi a partir de minha bagagem como músico profissional sendo violinista de jazz, conhecendo o sentido do movimento zazou e o repertório de swing manouche que animava seu espírito, e, por outro lado, da intensidade da experiência dessa minha recente redescoberta dos cancioneiros de protesto, que, portanto, concebi o espetáculo Sons de Liberdade: harmonizando num mesmo programa os cantos das vozes dissonantes em relação aos poderes opressores contra os quais se ergueram. Foi para mim uma espécie de resposta artística muito pessoal a esse momento que vivemos desde 2018, nascida de toda essa pesquisa e reflexão, traduzida na forma de algo que eu faço como músico, assim vertida na concepção do espetáculo Sons de Liberdade, que produzi neste ano de 2022 graças ao Prêmio do Proac por "Carreira Artística" com que fui contemplado.
Sons de Liberdade
A parte musical do show demandou a realização de uma extensa pesquisa histórica e mesmo laboratório estilístico, quando primeiramente transcrevi todas as músicas da porção zazou do programa das quais não se encontra partituras disponíveis, após o que fiz também os arranjos vertendo as canções modernas para a linguagem jazzística dos anos 30-40. Sendo, contudo, um espetáculo de música instrumental, tínhamos o desafio de conseguir valorizar o sentido mais importante das canções de protesto que é justamente seu significado a partir de seu contexto, em grande parte comunicado pelas letras das músicas, boa parte delas cheias de referências e expressões de época.
Quando se anuncia um programa de escopo jazzístico, muitas pessoas relacionam isso àquele tipo de experiência quase abstrata quando se assiste a uma espécie de exibição de performance de destreza técnica eventualmente até um tanto provocativa por parte dos músicos que improvisam longamente sobre temas cuja referência original ou contexto grande parte do público hoje desconhece, quando não os próprios músicos. Embora o swing seja a linguagem original da maioria das músicas da primeira parte do show e tenha sido também a linguagem escolhida para expressar musicalmente quase todos os demais temas do programa, Sons de Liberdade está longe de ser um show de jazz convencional: ao invés de priorizar a improvisação mais longa, o show prefere apresentar uma variedade maior de temas com seções de improviso mais pontuais em que a criatividade dos músicos faz com que as melodias assim respirem brevemente na mente da plateia sem contudo se distanciar muito dela.
O programa começa introduzindo as referências formativas do repertório zazou: dois temas do jazz negro norte-americano, dois hits klezmer do teatro yídiche novaiorquino e dois originais ciganos de músicos manouche de sucesso da época. Em seguida, apresenta alguns swings franceses e chansons compostos exatamente a partir do fenômeno cultural zazou: canções que são praticamente manifestos daquele espírito ou crônicas sociais daquele momento, outras de tom satírico evidenciando como os zazous eram vistos pela sociedade conservadora.
Chegando à parte central do show, são reunidas as melodias francesas e italianas que foram adotadas como hinos da resistência ao totalitarismo em ambos países a partir dos anos 40, sendo suas reprises nos movimentos sociais dos anos 60 por todo mundo a ponte para o repertório das canções de protesto brasileiras.
Por fim, a seleção de músicas brasileiras associadas ao ativismo político que dá conta de praticamente metade do espetáculo contempla desde a MPB e o samba na ambiência dos festivais nos anos 60 durante a ditadura, passando pelo rock nacional em torno do momento pós-Diretas-Já, chegando até os dias de hoje com uma variedade de estilos como axé, rock atual, sambas-enredo dos últimos anos, hip-hop e mesmo funk, todos eles expressando críticas aos sistemas de opressão e exclusão social.
Outra peculiaridade bastante marcante é o fato de o show fazer acompanhar a performance instrumental das músicas uma projeção de imagens que contextualizam cada canção - colagens de fotos de época dos locais, das personalidades, dos selos das primeiras gravações, cartazes dos artistas, cenas de episódios marcantes, caricaturas, bem como trechos mais relevantes das letras de cada música (traduzidos para o português, quando necessário).
O show estreou em Campinas, foi apresentado em Piracicaba e o será brevemente também em São Paulo - as três cidades do país que têm acolhido o desenvolvimento do Festival de Jazz Manouche ao longo da última década. A experiência dos shows tem sido sempre intensamente emocionante, com a participação ativa e espontânea da plateia cantando junto os refrões que expressam com tanta pungência os sentimentos não apenas de ativa indignação, revolta e resistência à opressão, mas, sobretudo, de esperança que nos revigora nessa comunhão de ânimos e nos impulsiona, assim, a seguir em frente e celebrar o triunfo que é continuarmos vivendo.
Veja as versões originais das músicas que foram apresentadas em versões manouche no show Sons de Liberdade acessando a playlist de referências.
Clique aqui para ver os vídeos do show em Campinas.
Clique aqui para ver a sequência de imagens que ilustram e acompanham as canções do show Sons de Liberdade.
Sons de Liberdade
23/01 às 19h00 | Teatro Sérgio Cardoso - Sala Paschoal Carlos Magno
R. Rui Barbosa, 153 - Bela Vista, São Paulo
Ernani Teixeira é graduado em Música pela Unicamp (Composição), por onde também é mestrando em jazz ao violino. É fundador do Hot Jazz Club, grupo de gypsy jazz pioneiro no estilo no país, além de produtor musical e sideman de artistas. É professor de violino há mais de 30 anos, além de lecionar em instituições de Ensino Superior disciplinas como História da Música, Arranjo, Composição, Contraponto e Harmonia.Trabalha intensamente em estúdios de gravação, transitando entre os estilos clássicos e populares, assim como na produção de material didático para cursos de História da Música.
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