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Prelo

Amor e fúria

Por Henrique Nunes


Curioso pensar que nem sempre devemos ser o centro das atenções. O protagonismo, a vida me ensinou, não é definido de antemão, como se cada linha já tivesse sido escrita - heróis de um lado, vilões de outro - e a nós restasse apenas a opção de fingir que estamos no controle.


Ser marionete é para os homens e para os cães! Talvez tenha sido aquela erva que usei sem saber o que era. Pode ser também coisa de hormônio. O cansaço da viagem. Estresse. Isso. Eu devo estar com estresse. Não importa. O fato é que, pela primeira vez na vida, eu aceito de imediato exercer um papel secundário.


Gato Vermelho (2000) de Aldemir Martins


Enquanto estiver por aqui, serei um mero observador da aflição alheia.

Ainda que minha chegada tenha sido imposta pelos meus antigos inquilinos, alérgicos e imaturos inquilinos, me sinto até privilegiado diante de tantos vazios ao redor em meu novo endereço.


Geladeira vazia. Gavetas vazias. O vazio dele próprio. Tudo isso transforma estes poucos metros quadrados numa imensidão de angústia e desespero.


Ah, enfim, encontro a janela. Há uma janela enorme, não sei se exatamente de frente para a rua, mas que vai me tirar desse tédio. Abra essa janela, cara! Sai da cama! Ele não dá a mínima para o que acontece fora daqui, um cubículo insalubre no qual terei que me adaptar.

Certa vez, alguém com quem morei me disse: os espaços só são úteis para quem quer viver. Eu ainda vou dizer isso a ele. Ah, vou. Não sei como. Talvez com as unhas. Mas vou.


Tudo bem que o mundo não anda lá muito propício para preencher esses vazios. Mas o que vejo me deixa com a sensação de que minhas queixas de antes eram mero chilique. Um grande e sonoro chilique siamês. Agora eu me culpo. Não por estar aqui. Mas por ter vivido em outros lugares. Por ter vivido antes dele.


Não há luz na casa. Não há luz nos olhos. O corpo é sem cor e mapeado por veias. Desnutrido. A escuridão do ambiente parece ser a sua resposta para esse vazio que foi tomando conta de tudo à sua volta.


Garrafas de vodca. Cinzeiro abarrotado de bitucas. Um vaso de flor entregue à própria sorte. A sua feição está murcha e nada parece indicar algum tipo de motivação.


Algo que possa convencê-lo de que vale a pena lutar. Cadê os seus amigos? Cadê a sua família?


Um amor inesperado, uma promoção no emprego, um esporte ou um hobby descoberto ao acaso. Que angústia me dá ver esta janela fechada.


Ele deveria assistir a essas séries românticas coreanas. Estão na moda. Vi uma meia dúzia com outros inquilinos. São idiotas, mas úteis. Ele deveria assistir. Só para abstrair e aproveitar que a sala vive escura. Ah, agora que notei. Não há nem TV na sala. Que tédio.


Olha, não sei mesmo o que o fará sair dessa. Se é que vai. Por enquanto, admito, sua condição decadente e prestes a um desfecho irreversível me causa misto de preocupação e fascínio: de longe, ele parece uma usina nuclear sob risco de explosão e me assusta; de perto, quero protegê-lo, como se seu corpo fosse um jardim inofensivo prestes a ser pisoteado por elefantes.

Amor e Fúria, terceiro capítulo do romance Livro Meu (Sub)Estimado Humano - Notas de um Gato em Desespero Diante de Homem Quase Morto

 

 

Henrique Nunes é jornalista e estreia na literatura com o romance eu (Sub)Estimado Humano - Notas de um Gato em Desespero Diante de Homem Quase Morto, pela

Editora Patuá, agosto de 2024. O livro conta a história de  gato que é colocado às pressas na caixa de transporte sem saber o destino. Logo depois, quando descobre o seu paradeiro, percebe o tamanho do problema que terá pela frente: seu novo endereço é um pequeno apartamento, espécie de solitária onde vive um homem aos farrapos. Sujo. Pálido. Triste. Intrigado com o que vê, o animal começa a refletir sobre a vida errática do seu novo "inquilino", ao mesmo tempo em que busca alguma forma de se aproximar daquele estranho.

 


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