top of page
Foto do escritorURRO

Prelo

Anti-Herói ou Demiurgo?

Por José Maurício da Costa

 

Não é à toa que o primo bonobo e o irmão chimpanzé se parecem conosco. Segundo a reza, nosso tronco em comum saiu lá da África. Meia dúzia de milhões de anos atrás pra mais. Disso, Maia sabia de cor e salteado. Quanto ao romper do Homo sapiens, a conta reversa fica algo entre cento e cinquenta e duzentos milênios. É essa a idade de uma ou outra cabeça achada na Etiópia. Então longe de ser esse o ponto. O que a arqueóloga queria mesmo entender era sobre o surgimento da arte. Não dessa exposta em galeria, mas de uma que pintou ainda antes da fala e da língua. Pois qual tipo de credo era preciso pra alguém fazer um templo daquele?


Mais fundo ainda: por mando e vontade de quem? A ‘Luzinha de Maio’ do avô gostava de fazer jus ao nome, tomado da época que nem filosofia ainda existia. Amadora de história, desde menina conhecia a ‘maiêutica’ do pai dos pensadores. Isso porque existia uma tal deusa Maia na antiguidade, padroeira das parteiras e responsável por dar à luz os viventes. Luz que Sócrates, personagem que ninguém sabe ao certo se viveu nesse mundo ou foi só invenção de Platão, decidiu jogar sobre as coisas pra ver se dava algum caldo. Esse caldo ele chamou de ‘verdade’, e partiu deste plano pra outro sem o achar.


Imagem de um trickster da tradição iorubá


Mais tarde, seu aluno e herdeiro disse encontrar. À morada da certeza, Platão deu o nome de ‘mundo da ideias’, um lugar bem pra lá do céu e fonte da qual um demiurgo bebia pra compor a matéria. Essa figura resistiu por um bom tempo e ajudou até Agostinho, o santo, na sua ideia de Deus: um maestro que era a harmonia dos astros em pessoa e cujo verbo era o próprio bem. Durante toda a escolástica, o arranjo lá de cima e a ordem secreta da natureza deram o tom do quadrivium – aritmética, geometria, música e astronomia, as quatro disciplinas que tratavam da tal ‘verdade’ que Sócrates morreu sem saber se era feia ou bonita.


Pois como explicar a presença dessa mesma ideia já ali, na cidade dos pássaros, na disposição de cada monólito e na proporção de cada petróglifo? Desde o desenho do índígena e do mito de origem, passando rabisco por rabisco da série que representava tanto aves de rapina quanto de pequeno porte, a medida tava ali. Simetria incomum, é fato. Mas era só olhar uma planta, uma nuvem ou até um aglomerado de gente pra ver que nenhum fenômeno era à toa. Deve ser esse mesmo milagre que Newton avistou com a gravidade ou que Einstein pressentiu como relatividade.


Koch-Grunberg também deve ter vivido algo parecido ao colher as primeiras histórias de Macunaíma, personagem que nosso Mário Raul de Andrade fez de anti-herói do gentio brasileiro. A imagem do primata ilustrada no verso do escrito de Seu Man’antônio podia ser coincidência. Mas também não podia. Quem sabe o encantado dos Taurepang, Wapichana, Ingarikó, Macuxi e Pemom não fosse uma espécie de Exu ou de Xiva, que dançando constrói, dançando destrói. Tudo no mesmo jogo. Brincando com o fogo, o indígena bem que pode ter se enfezado pelo pé queimado.

Daí o estouro da bola maior do que o Sol, o pontapé do mundo em um gesto irado. A diferença única do nosso herói da criação pro demiurgo de Platão é que, em terra de bananal, o bem não difere do mal. E ponto final.


Anti-Herói ou Demiurgo?, sétimo capítulo do romance Terra dos Pássaros

 

Serviço

Terra dos Pássaros pode ser encontrado na loja física da Livraria Pontes — Campinas/SP, ou na loja online da Mondru Editora: www.mondru.com/produto/terra-dos-passaros



José Maurício da Costa é autor, pesquisador e designer gráfico dedicado ao resgate dos processos de construção do imaginário brasileiro e latino-americano em sua obra. Desde 2020 é responsável pelo Storiologia®, um estúdio que recorre à inteligência narrativa para valorizar o aspecto multiculturalista de marcas e símbolos, além de co-dirigir o periódico Poiesis®, que desenvolve e divulga ensaios nas áreas de filosofia, história e crítica literária.

 




34 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Prelo

Prelo

Comentarios


bottom of page