Os seres invisíveis, ainda que ocultos, habitam as cidades e movem suas engrenagens.
Por Bruno Zambelli
Sebastião tem os olhos cansados, amarelados pelo peso do tempo e laceados pelo sono constante que insiste contra a atenção do cabra que fez da noite seu cenário e da vigilância sua profissão, mesmo que informal. O homem já passou dos sessenta, não com folga mas com muito mérito e certa malandragem, e leva a vida a perambular pela madrugada paulistana em busca do pão amanhecido que enfia goela abaixo toda amanhã antes de gozar do sono dos justos na cama de solteiro que habita com muito custo numa pensão no famoso Bixiga, bairro tradicional da capital. De boné enfiado na cabeça e colete florescente grudado no peito, o senhor bate ponto pelas redondezas da Praça Roosevelt, mercando aos gritos as vantagens que convencem seus clientes a deixarem sob seus cuidados os valiosos carros que descansam sossegadamente rente ao meio-fio enquanto Sebastião, que só se locomove “de a pé” pelo bairro, luta contra o sono em defesa do repouso seguro daqueles fetiches metálicos que tanto significam aos frequentadores dos bares e teatros da região. Não fosse Sebastião, e mais uma dezena de concorrentes que disputam a gritos e gestos os clientes motorizados, muitos vidros seriam estraçalhados e, por consequência, muitos espectadores teriam suas noites estragadas por conta de um arrombamento comum que faz, através da injustiça e do descaso, com que muitos cidadãos, munidos de muito desespero e pouco futuro, invistam contra os autos em busca de um rádio, de uma carteira ou de um estepe que faça valer a noite ou passar a fissura. Seba, como é conhecido no rolê, tem a casca dura e a piedade pouca: anda de porrete na cinta, apesar de se gabar de nunca ter usado a ferramenta, e garante que durante sua vigília nunca houve um carro violado nos arredores da Roosevelt. Isso até o mês de Março, quando o fechamento forçado de todos os espaços fez sumir dali a freguesia e o pouco de dignidade que ainda havia em sua vida levada na corda bamba equilibrista.
O mundo nunca foi bom pra toda gente e infelizmente nem todos tem o direito de ter direitos nesse país esquecimento em que fomos rebentar.
Desde então as coisas mudaram pra Tião: o pão, quando o tem, é duro. O sono anda ainda mais atrasado, como o aluguel da pensão que se acumula entre os olhos abertos do velho Sebastião que não consegue mais enxergar no horizonte um futuro. Sem direito a auxílio ou lembrança de quem quer que seja, provando na própria boca o gosto amargo da urgência, Sebastião é mais uma das vítimas invisíveis que sobreviviam graças ao movimento dos teatros e casas de espetáculo que existem na cidade. Mas, diferentemente dos artistas, o velho Seba só é lembrando quando ronca feito cuíca em defesa de sua existência. Paciência, Sebastião. Paciência. O mundo nunca foi bom pra toda gente e infelizmente nem todos tem o direito de ter direitos nesse país esquecimento em que fomos rebentar.
Pertinho dali, como se olhado de esgueio do ponto de Seba, ficava outro trabalhador: o vendedor ambulante Álvaro. Em seu carrinho, que arrasta pelas ruas de São Paulo, o rapaz carrega todo o aparato para servir milho verde cozido na porta das casas de espetáculo, a tiracolo um isopor lotado de cerveja gelada fazia as vezes para quem preferia molhar a palavra nas calçadas e canteiros da praça durante a madruga. O serviço completo, espiga com manteiga e lata de cerveja, custa dez reais e ainda é o carro-chefe do homem que despencou do norte rumo a Sampa em busca de um futuro, melhor ou pior, mais um futuro que fosse. Conseguiu: com muito esforço e pouco gasto encontrou morada na imensidão escura que separa Guaianazes de Santo Amaro, donde sai logo cedo com toda a sua tralha em direção ao centro. Hoje, com o fechamento dos teatros, vive do fluxo contínuo, e muitas vezes irresponsável em épocas de Covid, que ainda entope e tumultua todo terminal de ônibus e trem da capital paulista.
Sebastião e Álvaro, Álvaro ou Sebastião, são apenas dois das centenas dos casos de pessoas que tem sua existência impossibilitada, invisibilizada, por uma máquina de moer gente chamada informalidade.
Álvaro, que tropica dezenas de quilômetros a pé arrastado seu carrinho, serve trabalhadores que, como ele, enfrentam uma pandemia sem precedentes com a mesma coragem que levou muitos, também como ele, a cruzar estados e divisas em direção a uma vida mais digna. Álvaro, como Sebastião, não tem auxílio. Na verdade não tem nem documentos. Aliás, com uma certa vergonha admite que nem sabe ler. Quando precisa de algo, como na última semana em que visitou a toa a fila da Caixa Econômica, o rapaz assina com o dedo. O mesmo dedo que segura com firmeza espigas fumegantes, latas de cerveja congelantes e o touro da vida que chacoalha, treme e vez ou outra ainda insiste em tentar fugir das garras do ambulante que não vê a hora de poder voltar a faturar seus caraminguás na porta dos teatros e das boates que até ontem lhe garantiam sobrevivência e sorrisos dos clientes que, mesmo sem saber nada sobre ele, juravam pela madrugada que era o “camarada” mais gente fina das noites insones dessa cidade que teve de aprender a dormir na marra.
Sebastião e Álvaro, Álvaro ou Sebastião, são apenas dois das centenas dos casos de pessoas que tem sua existência impossibilitada, invisibilizada, por uma máquina de moer gente chamada informalidade. São trabalhadores com rotinas árduas e inconstantes que mesmo invisíveis fazem parte da engrenagem que possibilita a vida cultural numa cidade que, como tantas outras, está iludida pelo poder e refém das armadilhas monetárias que abocanham corpos e condenam homens, mulheres e crianças a uma subsistência tão doída quanto absurda. Tião e Álvaro não tem direito à Lei Aldir Blanc ou a auxílios emergenciais, apesar de viverem na pele a urgência de cada dia. Eles não tem lugar de fala ou de reclame numa realidade em que passam despercebidos, camuflados numa rotina injusta que os confunde com a paisagem urbana da qual todos que podem tentam fugir quando a vista não parece cômoda. Sobrevivem assim, de qualquer jeito, na base do acochambramento e do atropelo, apesar de serem peças fundamentais do cotidiano cultural que, sem eles seria no mínimo menos interessante, seguro e humano.
Lutar pela cultura, pela existência dos espaços e dos grupos, é também lutar por todos os trabalhadores, formais e informais, notórios ou anônimos, que fazem da cultura alicerce primordial de uma nação que pretende se afirmar diante de um mundo às avessas.
Há tempos a performance ao vivo se isolou, e isso falando de maneira geral, sem retoques, das questões e causas populares em nome de um flerte exclusivo com a classe média. Os temas e a publicidade de espetáculos e afins já serviriam para ilustrar facilmente essa escolha, mas nas atuais circunstâncias as histórias de Sebastião e Álvaro servem de exemplo não do que somos, mas do que podemos ser daqui pra frente. Deslocados dos interesses públicos, afastados dos debates e jogados às traças a espera de uma ajuda que nunca chega, talvez nunca tenha sido tão fácil aos artistas se enxergarem, hoje, na posição em que aqueles seres sempre se encontraram: a de invisíveis.
Lutar pela cultura, pela existência dos espaços e dos grupos, é também lutar por todos os trabalhadores, formais e informais, notórios ou anônimos, que fazem da cultura alicerce primordial de uma nação que pretende se afirmar diante de um mundo às avessas. Se defendemos esse ou aquele artista devemos também defender ambulantes, vigilantes, iluminadores, contra-regras, camareiras e toda essa gente que faz do teatro a coisa mais bonita do mundo: uma forma de resistência sem armas nas mãos mas com munição pra derrubar tiranos e canalhas.
Tudo há de passar, é fato, e quando passar estaremos nas ruas, firmes e fortes, sob o olhar atento de Sebastião e com a cerveja gelada de Álvaro a nos proporcionar o brinde da vitória. Passaremos, tenham certeza, e só o faremos com o apoio dessa gente invisível que, como nós, também ocultos, tramam pelas sombras em defesa de um novo dia de sol que possa, enfim, brilhar pra todos.
Bruno Zambelli é escritor.
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