A Luz do Abismo
Dividido em quatro capítulos: A tampa do bueiro sucumbe, Poros expostos em vista nublada, Extensões possíveis ao restrito cenário e A invenção do instante, o segundo livro do poeta Armando Martinelli traz sua lupa rigorosa (e vigorosa) acerca do cotidiano. A URRO! publica três textos mutantes e irônicos do autor.
Algumas poesias (ou seriam as pessoas?) demoram a se abrir ao leitor. Regra número um: o leitor de poesia há de ser paciente, há de voltar ao livro com devoção, vulnerável ao mistério, até que em um par de horas, comum como outro qualquer aquelas palavras se abrem inexplicavelmente e te convidam para uma dança, é o caso deste livro.
Aqui, a poesia é uma boca sem dentes, mucosa de pântano, escura, úmida, impossível de se desvencilhar. Entramos em contato com as camadas existenciais da palavra através das sombras e de repente o poema é o apátrida que caminha ao nosso lado desfocado e no entanto íntimo.
A Luz do Abismo é um livro de contrastes, a ruína do que outrora foi regresso. Carrega as particularidades da (de)composição onde há humanos? São todos uns irreconhecíveis. Não sem ironia caminhamos pelos poemas, não sem humor ou lirismo na fresta, a teimosia de um mamão no muro.
Algo de Brecht que grita a tua indignação está no lugar errado, mas o mundo esqueceu os óculos e ainda assim: Armando aproxima distâncias, mergulhando no ritmo das florestas somos o barulho das folhas enquanto alguém corre por nós.
Há neste livro o imperativo do verbo e a fragilidade do medo do dentro da rua na ponta dos versos: flanela na lança são poema revestidos de notícia, de revolta e de inversões. As palavras e o seu hálito da infância se derramam em um dos mais belos encontros deste livro. Dois poetas, tio e sobrinho; três com o demônio, quatro com o riso (rir cúmplice é uma saudade unânime) e tudo isso dentro do poema e seu sinônimo, o Abismo.
Texto da escritora Aline Bel para a orelha de A Luz do Abismo (Editora Urutau 2022), segundo livro de Armando Martinelli, jornalista, poeta, escritor, radicado em Campinas.
A obra encontra-se em venda virtual no https://editoraurutau.com/titulo/a-luz-do-abismo
Spoiler.
Welcome to brazil
O senhor de meias e chinelo arruma o relógio
o entregador de jornal se aproxima
desgraças sobrevoam os muros
O senhor de meias e chinelo arruma o relógio
não vê a troca de guarda na floresta
não soube da nova chacota do ministro
ouve a gargalhada no andar de baixo
O senhor de meias e chinelo arruma o relógio
não se lembra do desmoronar infindável
quem sabe ganhará um livro de aniversário
beleza pura é antídoto
tambor dos acordos mais profundos
Eles decidem a aposentadoria na Ilha de Caras
dançam
todos eles dançam
sapateiam sem qualquer pudor
Welcome to brazil
O senhor de meias e chinelo arruma o relógio
não se preocupa com a coletânea de impropérios
prefere a mordida poética no ouvido
a boca sedenta de saliva
Cruza a rua do Professor e reverencia
cambalhota é alívio na terra do louvado retrocesso
Semáforo
Crianças, gêmeas, no carrinho empurrado pela moça de uniforme
olhares conduzidos por dedos apontados às novas percepções
Uma senhora surge na cena
passa ao léu, cabeça baixa,
não penetra o radar dos pequenos
Paisagem captada no centro das Campinas
no final de uma tarde qualquer
vê o carrinho dos bebês cruzar o pôr do sol
imagina dedinhos saltitantes
A senhora volta ao cenário, do outro lado da rua,
em frente à farmácia
o tempo de um semáforo
A espera
O lábio contra a xícara quente de café
independente das discussões acerca do plano crucial
o aguardo ultrapassa a cena
conduz o tempo na sacola de feira
puída
corroída em memórias
O lábio contra a xícara viciosa de café
mesmo com as pilantragens do comércio mundial
tentativa de conter fragmentos aleatórios
passo a passo do anticlímax
ensaio amorfo em conta-gotas
corredor das fugas elaboradas
O lábio contra a xícara perfumada de café
porto de embarque ao desejo matinal
escape sentinela das certezas
abrigo aos fura-filas cotidianos
do parapeito do gradil urge o calendário
Liberador de endorfina
Destemido
coçou a orelha do inimigo sem deixar arranhão
elogiou a postura do milico
fina camada de requinte
caçoar dessa gente libera endorfina
Libertino
cheirou o cangote de políticos sem apertar o cifrão
seduziu bonecos de cera por esporte
cutucou egos sem melindres
brincar com esses seres alivia
Orgulhoso
congelou movimentos na hora certa
modificou a rota corporativa
represou a pressa
inverteu o fluxo-anestesia
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