A poeira da casa dança
Por Marina Grandolpho
Antes de começar esta costura
procurei expulsar a poeira por cima de cada objeto
: máquina agulha linha tesoura dedal
em vão
a poeira dança sobre os objetos
esquecidos ou não
esconde os lampejos de memórias
nas frestas onde ninguém alcança
a primeira vez de cada experiência
o nascimento de algo
a última discussão
o estalo dos dedos inquietos
os passos ouvidos no andar de baixo
o estrondo da porta batendo a cada desentendimento
[ou vento forte
você esqueceu de calçar o peso na porta?
em meio às ruínas ainda restam:
o pó incansável e um vestígio de vida
***
Habitação primária
Por exatas 40 semanas
não houve solo algum circunscrito
sob os meus
minúsculos pés
banhados por líquido amniótico
eu não me lembro como era
viver naquele país
sem fronteiras,
mas minha mãe sim
— como se fosse ontem
***
Pedrada
Amar uma pedra
escapando ao percurso
atirada do quintal vizinho
para acertar a janela
atingiu minha têmpora
agora trêmula de dor
preferi não amá-la
— nem dentro
nem fora
da trajetória
Texto de orelha
É usando Adília Lopes e Alejandra Pizarnik como epígrafe que Marina Grandolpho inicia “A poeira da casa ainda dança”. O título deste livro nos traz uma imagem poderosa: a poeira que ainda evolui coreograficamente no espaço da casa.
Ao longo do livro, sujeiras e rituais de limpeza se alternam, em um trajeto que nos convida a percorrer também certa linha do tempo, refúgios, ruínas, lembranças vagas que antecedem “o esquecimento completo/: basta um sopro”.
Mas espanar a poeira, soprá-la, não é limpar, é espalhar, é propor um novo movimento, é convidá-la para o salão, dois para cá, dois para lá. Aqui a poeira ainda dança, mesmo que não recorde exatamente como devem ser os passos. Portanto, mais do que limpar a poeira das lembranças, a proposta é evoluir pelo espaço com ela, pois trata-se da poeira que, como a memória (e como o poema), “(...) sempre fica”.
Lilian Sais, escritora.
Marina Grandolpho é formada em Letras pela UFSCar e doutora em Estudos Literários pela Unesp. É professora e escritora. Possui publicações em revistas e portais literários, além de textos como destaques e finalistas em coletâneas. No início de 2023, publicou “Maquinário feminino e outras conversas” (Patuá), seu livro de estreia. Agora, é a vez do seu segundo livro de poemas: “A poeira da casa ainda dança”.
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