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Poeshydra

Atualizado: 30 de mar. de 2023

Vem segura a minha mão

Por Emília Souza


Não é apenas um livro; se você olhar de perto o bastante, verá que também é espelho. Ele retrata o ser-sentir, em especial, num corpo de mulher. Expõe cicatrizes, fissuras [será que é por elas que a luz entra?], sem deixar de fora as feridas que nunca se fecham, sangram pra dentro, contaminam as entranhas [as entranhas, é de lá que a poesia vem]. Mas não se preocupe, ele irradia um tanto de luz também, como todo espelho.



sabá


vem

segura a minha mão

temos um sabá esta noite

mas deixemos em paz

as árvores e florestas

empilhemos sobre as pedras das praças

bem no meio das cidades

corpos de abusadores

ateemos fogo

dancemos em volta da fogueira

brindemos a morte

não há pecado ou feiura em desejá-la

comemorá-la

não há pecado no alívio

que só a morte deles

concede às mulheres

à carne podre que queima

não restará oportunidade

de contaminar a terra

e quando o dia raiar

ao menos algumas de nós

estaremos mais seguras


páscoa


coberta de sangue

do alto de um sustento frágil

a primeira visão do mundo

de ponta-cabeça

tremendo de um medo que nem era meu

a sentença

o útero primeiro ainda sangrava

quando o derradeiro foi anunciado

atraídas pela ferida aberta

moscas praguejavam — vai morrer

e morri

quinze anos ensaiando morte morrida

pra morrer de morte matada

de seio exposto

santa ágata não foi por mim

debaixo de um céu sem via-láctea

rá não amanheceria de minhas entranhas

uma moeda na boca me guia à porta do hades

atirada ao duro chão dos infernos

nua e curvada

no sétimo portal avistei inanna

não mais crucificada

rompi o solo em encarnada papoula

do jardim de perséfone


olhos abertos


depois de semanas

maldormidas

olhei a faca pousada

sobre a cabeceira


eu seria capaz de matar?


nisso somos todos iguais

a única diferença é que alguns

atravessam a vida sem precisar

de fato se perguntar

mas quando se tem a resposta

alguma coisa muda dentro de você

eu a presa

enfim tinha algo a dizer

quando ele apareceu o deixei entrar


tem que cravar a faca

e girar pro sangue não estancar

gravei bem quando vi num filme

que nem lembro o nome


o corpo foi entregue

em um balde plástico com tampa

a cabeça

cortada na altura do ombro

virada pra cima

os olhos

cuidei de mantê-los abertos


meus anjos

fazem alianças com seus iguais

meus demônios

não são diferentes


partes indisponíveis de mim


minha cara está indisponível pros seus tapas

meu coração pros seus desmandos

meu estômago pros seus sapos

e meu sexo pro seu prazer


ela


ela é flor espinho néctar e sangue

lúcida como a embriaguez

clara como a noite

e bela como uma lágrima inapropriada


Informações técnicas

Título: Vem segura a minha mão

Autora: Emília Souza

Editora: Patuá

ISBN: 978-65-5864-453-8

Número de páginas: 68



Emília Souza é mulher, nascida em 8 de março, há 40 anos, numa pequena cidade mineira. Passou a infância na roça, rodeada por linguagens, realidades, crenças e dinâmicas absolutamente diferentes das tantas outras que conheceria ao longo dessas quatro décadas. Cria desde a primeira necessidade de se expressar neste mundo. Já colocar no papel, demorou um pouco; e tirar da gaveta, muito mais. Hoje, é graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela Facamp (onde estudou com bolsa 100% pelo Prouni; salve os programas sociais!) e, no momento, atua como roteirista audiovisual. Na literatura, faz parte do “Coletivo Bambu”, formado por autores de Campinas e região; e do “Coletivo RuídoRosa”, formado por autores de todo o país.

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