Vem segura a minha mão
Por Emília Souza
Não é apenas um livro; se você olhar de perto o bastante, verá que também é espelho. Ele retrata o ser-sentir, em especial, num corpo de mulher. Expõe cicatrizes, fissuras [será que é por elas que a luz entra?], sem deixar de fora as feridas que nunca se fecham, sangram pra dentro, contaminam as entranhas [as entranhas, é de lá que a poesia vem]. Mas não se preocupe, ele irradia um tanto de luz também, como todo espelho.
sabá
vem
segura a minha mão
temos um sabá esta noite
mas deixemos em paz
as árvores e florestas
empilhemos sobre as pedras das praças
bem no meio das cidades
corpos de abusadores
ateemos fogo
dancemos em volta da fogueira
brindemos a morte
não há pecado ou feiura em desejá-la
comemorá-la
não há pecado no alívio
que só a morte deles
concede às mulheres
à carne podre que queima
não restará oportunidade
de contaminar a terra
e quando o dia raiar
ao menos algumas de nós
estaremos mais seguras
páscoa
coberta de sangue
do alto de um sustento frágil
a primeira visão do mundo
de ponta-cabeça
tremendo de um medo que nem era meu
a sentença
o útero primeiro ainda sangrava
quando o derradeiro foi anunciado
atraídas pela ferida aberta
moscas praguejavam — vai morrer
e morri
quinze anos ensaiando morte morrida
pra morrer de morte matada
de seio exposto
santa ágata não foi por mim
debaixo de um céu sem via-láctea
rá não amanheceria de minhas entranhas
uma moeda na boca me guia à porta do hades
atirada ao duro chão dos infernos
nua e curvada
no sétimo portal avistei inanna
não mais crucificada
rompi o solo em encarnada papoula
do jardim de perséfone
olhos abertos
depois de semanas
maldormidas
olhei a faca pousada
sobre a cabeceira
eu seria capaz de matar?
nisso somos todos iguais
a única diferença é que alguns
atravessam a vida sem precisar
de fato se perguntar
mas quando se tem a resposta
alguma coisa muda dentro de você
eu a presa
enfim tinha algo a dizer
quando ele apareceu o deixei entrar
tem que cravar a faca
e girar pro sangue não estancar
gravei bem quando vi num filme
que nem lembro o nome
o corpo foi entregue
em um balde plástico com tampa
a cabeça
cortada na altura do ombro
virada pra cima
os olhos
cuidei de mantê-los abertos
meus anjos
fazem alianças com seus iguais
meus demônios
não são diferentes
partes indisponíveis de mim
minha cara está indisponível pros seus tapas
meu coração pros seus desmandos
meu estômago pros seus sapos
e meu sexo pro seu prazer
ela
ela é flor espinho néctar e sangue
lúcida como a embriaguez
clara como a noite
e bela como uma lágrima inapropriada
Informações técnicas
Título: Vem segura a minha mão
Autora: Emília Souza
Editora: Patuá
ISBN: 978-65-5864-453-8
Número de páginas: 68
Instagram da autora: https://instagram.com/a.emiliasouza?igshid=Mzc0YWU1OWY=
Instagram da editora: https://instagram.com/editorapatua?igshid=MDM4ZDc5MmU=
Emília Souza é mulher, nascida em 8 de março, há 40 anos, numa pequena cidade mineira. Passou a infância na roça, rodeada por linguagens, realidades, crenças e dinâmicas absolutamente diferentes das tantas outras que conheceria ao longo dessas quatro décadas. Cria desde a primeira necessidade de se expressar neste mundo. Já colocar no papel, demorou um pouco; e tirar da gaveta, muito mais. Hoje, é graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela Facamp (onde estudou com bolsa 100% pelo Prouni; salve os programas sociais!) e, no momento, atua como roteirista audiovisual. Na literatura, faz parte do “Coletivo Bambu”, formado por autores de Campinas e região; e do “Coletivo RuídoRosa”, formado por autores de todo o país.
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