Poeshydra
- URRO
- 1 de set. de 2022
- 6 min de leitura
Se eu pudesse jogar meu coração
Por Gonzalo Dávila Bolliger

Se eu pudesse jogar meu coração para a noite E projetar numa tela do tamanho do mundo Todas as cores dos meus pensamentos, Se eu pudesse jogá-lo Por um segundo jogá-lo E fosse submergindo o coração no escuro E fosse revelando o infinito de cada lembrança, Quanto deste caos antes invisível Não seria sentido por mim e por todos Como uma tempestade de raios e oceanos Soletrável como a mensagem do vento?
Cada quarto aberto e nunca fechado Cada abandono e cada fuga-refúgio A forma única como amei cada garota Como por um segundo delirei sentir seus pensamentos (As palavras e olhares tão incapazes de dizer
A verdade)
E como pelas ruas busquei por espelhos Lembrando, sempre, daquele anoitecer - O alívio infinito de poder cantarolar o vazio De exprimir vértebra após vértebra a flauta do desespero,
Sim, se eu pudesse jogar meu coração Bem ao fundo da noite dos demais corações, Eu a todos provaria: Nada na nossa Via-Láctea é falso Cada alegria e dor antes
Absurda É inevitável como as marés do universo...
Ah, os pensamentos são da mesma matéria que os sonhos Mas reais como um copo ao se romper com o chão. E por isso a eterna pergunta, Como não querer dar o grito dos gritos? O suspiro Dos suspiros? Projetar Na noite de todos a nossa única noite? E os que ouviriam as cores e sons se misturando E os que veriam a sucessão de todos meus sonhos Mais verdadeiros que a vida na vigília, Ficariam maravilhados ou aterrorizados Sempre atônicos em comunhão com mim mesmo, Algas acorrentando as nuvens escadas perdendo
Os degraus no relógio a mesma hora niebla oscura Da da
Do svidaniya, A única vez que eu poderia mostrar quem eu sou, Quem realmente sou, Se eu pudesse Jogar meu coração para a noite.
(Do livro: A Melancolia)
(Sem título)
Te procurei em todos os trens até encontrar-te,
No fim de um deles tua alma levantou-se:
O amor – essa ilha do outro lado do mar –
Me olhou como se o mundo
Acabasse de nascer.
(Do livro: “A Melancolia”)
Cátedra
Em meio a escadas que flutuam
E a degraus que nada levam
Em meio a lentas tristes melodias
E a lágrimas distantes que não podem ser mais vistas,
Algo levanta o tom da voz enquanto morre
E predica um veredicto intransponível:
Onde os anjos como escravos se arquejam
Onde as maléficas flores jamais morrem,
Onde os cães ladram por um golpe que os cale
Onde tudo o que se vive é um eterno suicídio,
Onde os rios esguios jamais encontram sua foz
Onde tudo é solidão e cátedra e dor,
Onde todos os rostos são de pedra
Onde os pássaros voam roubando nossos sonhos,
Onde tudo se repete eternamente
Formando eternos círculos de fogo,
- o escuromente -
Pasta negra e sem fundo
Onde tudo se origina e se aniquila.
(Do livro: Rumo ao Âmago da Própria Voz)
A sala onde o tempo está retido
A sala onde o tempo está retido
Possui milhões de labirintos
Cada um contendo um raro e estranho artifício
Uma infinita e ardilosa biblioteca.
E cada livro de cada infinita biblioteca
É um segundo ínfimo de cada vida
Que representa por si só e separadamente
Uma única e indecifrável existência.
As engrenagens do tempo estão todas ali
Esperando serem reveladas por cada misero espírito
Que se atreve a entrar em seus mistérios
E a desafiar as infindáveis vidas que estão nas bibliotecas:
O relógio universal está no centro do infinito,
No ponto onde convergem os mais distantes absurdos,
E o teto da sala está coberto por mágicos espelhos
Que seduzem os incautos peregrinos
A experimentarem os mais diversos elixires...
A sala onde o tempo está retido,
Distante de tudo,
Recria-se a si mesma,
Toda vez
Que um ser,
Perdido,
A encontra.
Mas seu grande relógio,
Não pode parar;
E os seres solitários
Reclusos continuam para sempre
Tentando consertar o seu destino.
(Do livro Rumo ao Âmago da Própria Voz)
O grande teatro
Das ilusões perdidas
(Após o arco íris, as montanhas, o oceano, labirintos
E após ter galgado deveras o palácio de cristal,
As portas do grande teatro se abriram
E eu finalmente caí na mente coletiva
Dentro da qual eu sempre estivera)
As portas do teatro se abriam
E eu não podia mais reter as imagens fraturadas
Que se levantavam como verdadeiras muralhas
Diante da minha insaciável loucura;
Senhoras e senhores,
O grande teatro das ilusões perdidas
Havia se adentrado em meu próprio esqueleto
E os flutuantes jardins se desfaziam para sempre
Como se eu jamais os houvesse sonhado!
As cortinas cor de rosa se abriram,
As eternas marionetes me saudaram,
“Bem-vindo oh sempre morto sempre ausente!”
“Bem-vindo oh peixe-morto lula órfã ostra estéril!!”
E eu não tinha mais escolha
Além de encarar aquele cortejo radiante
De eternas marionetes disfarçadas de viventes...
E seus atores estavam mascarados,
Cada um levava uma máscara representando sua alma,
E uma máscara representava um falo sem limites
Outra uma taça de champanhe transbordante
Uma outra um vestido de nódoas sempre limpo
E outra ainda uma nuvem como emblema.
E no meio do palco em uma mesa em um festim
As princesas de cabelos azuis verdes e vermelhos
Olhavam-se umas às outras entediadas
E os cavaleiros jogavam o baralho que move os continentes
Após terem conquistado os monopólios de ouro-negro
E o único que todos diziam
Entre mil e uma palavras pronunciadas
ERA
O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO
E eu me desesperava como em um redemoinho
Acurralando-me como um feto sem placenta
Olhando a todos como um alma pressa ao limbo
Sem entender qual era o ponto de chegada
E tentando me esconder no ar que expelia;
Mas eles sorriam sorriam e sorriam
E apenas repetiam, repetiam, repetiam
O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO
(Cenário em ruínas. Cortinas abertas em uma boca fétida, sem dentes)
Senhores e senhoras
O grande teatro das ilusões perdidas
Havia se fincado finalmente
No coração da cordilheira de meus nervos!
“O que vocês estão fazendo?” -
(eu gritei para os atores) –
Nós
Estamos empilhando os destroços
Das estátuas que tentaram alcançar o paraíso!!
Um segurava uma Bíblia, o outro um Alcorão,
Outro um Veda e outro ainda uma espada
E em um canto que apenas por mim ser visto poderia
Refugiavam-se as criaturas notívagas sem lume
Que a busca do ouro e do poder não suportavam...
E nesse canto o albatroz já não alçava as suas asas
E nesse recanto todos caçoavam do albatroz
E Sherazade contava os seus sonhos para os surdos
E não era Ulisses que conquistava Penélope – a bela -
Mas sim os bárbaros que se aproveitam do banquete,
- “O que vocês estão querendo dizer com tudo isso?”
Os atores novamente se viraram para mim
E dessa vez, com os livros abertos em seus braços,
Apenas repetiram, repetiram, repetiram
O que todas as obras disseram,
O que todas as religiões esconderam,
O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO!
(Flores se espalham pelo piso. Os atores dialogam entre si)
“Yuppie! Yuppie! O que faremos hoje?
O que faremos depois? O que
Faremos jamais?”
“Comeremos um pouco de esterco
E depois nos sentaremos sobre os tapetes dourados
Onde fizemos o amor sem amor
E faremos um grande desfile de peles
Enquanto vemos um pouco da tela sagrada
E nos deleitamos com o que no tédio fazemos
– a guerra -
Confesse, não é divertido?”
“Enquanto a máscara escarlate não vem
Oh, iremos nos divertir mais um pouco...
Masturbando-nos enquanto ela não chega
E fingindo interesse pelas patéticas questões da igreja...”
“Não é isso que devemos fazer?
Peguemos mais alguns animais
E os levemos pela coleira entre as estradas da morte!
Aqui o universo é um eterno banquete
E queimemos os que não acreditam em Deus!”
(Arroz caindo do céu - o grande matrimonio da alegria se formando)
“Yuppie! Yuppie! O que faremos hoje?
O que faremos depois? O que
Faremos jamais?”
“Iremos à vidente Astrolábia
E perguntaremos sobre o nosso destino
O qual é sempre o mesmo
E o qual por todas as gerações se repete.
Andaremos por imensos salões
Fumaremos as orgias do tédio
E quando tristes ficarmos
A ouvir uma música alegre iremos
Pois a alegria é nosso lema sagrado
E a tristeza uma música inútil”
“E quando nada disso adiantar
E quando nada disso adiantar e quando nada disso
Adiantar Faremos Juntaremos Rezaremos
Juntaremos Comeremos Guardare E quando nada disso
Nada disso Adiantar e quando nada nada nada
Nada nada... quando... nada nad n nad
(e eu me desesperava dando voltas ao redor da minha mente
Como se estivesse sendo pela minha própria inspiração afogado
Pois havia por toda a vida repetido repetido e repetido
Um monologo sem pausas e sem pausas e sem pausas...)
De todo esse nascimento sem pátria
De toda essa infância sem alma
De tantos romantismos inúteis
E desses prazeres todos que duram menos que os sonhos
O que era o único,
O único que poderia sobrar?
Oh, o que todas as obras disseram,
O que todas as religiões esconderam,
O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO!
O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO!!
...
As cortinas cor de rosa se fecharam,
Os horizontes de todos os céus se comprimiram.
Eles tiraram as máscaras,
Atrás destas apenas outras máscaras se viam
Iguais, mas que jamais ser retiradas poderiam...
E após eles irem para frente do teatro
E as cortinas atrás deles se fecharem,
Eles tocaram com as mãos o piso do inferno,
Olharam para mim como se eu fosse o único presente
E, em coro, em límpida harmonia, promulgaram:
-Você sempre foi velho. Observe, como crescem
Ervas grisalhas sobre tua deserta cabeça!
- Você sempre foi velho. Estar acima quiseste
Mas foste sempre pelas nuvens vencido!!
--Você sempre foi velho. Nunca
Poderás desfrutar da infância do mundo...
Mas o mundo inteiro parecia o teatro
E como se fosse adentrar-se
Nas vulvas de uma mulher que se amasse
E não chegar a útero algum,
Assim aquelas máscaras sem rosto
Jamais de meus marejados olhos sairiam
E apenas uma palavra, uma única e triste palavra
Ecoaria para sempre em minha mente:
O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO
(Do livro Rumo ao Âmago da Própria Voz)
Gonzalo Dávila Bolliger nasceu em 1989 em Lima, Peru, e se mudou para o Brasil em 1994 com os pais. Estudou Letras na USP e tem como alguns dos seus livros: Rumo ao Âmago da Própria Voz (poesia, pela Editora Autografia); As Realidades Invisíveis (conjunto conceitual de contos e novelas; pela Editora Autografia), Um Gato no País dos Evangélicos – uma sátira da nossa sociedade (novela, pela Autografia), As Fronteiras do Sonho (novela, pela Maracaxá) e A Melancolia (poesia, sairá este ano de 2022).
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