Poeshydra
- URRO
- 29 de mai. de 2020
- 2 min de leitura
Atualizado: 21 de jun. de 2022
Poemas de Claudia Baeta Leal

Queimada
Ardo Queimo em combustão aguda, criminosa. Na vastidão de um incêndio incontrolável, sou fagulha, brasa e chama. Carvão como propósito.
Ardo. Marco clarão na noite, clareira aberta, vil e clandestina, na floresta. Mata morta em chamas e fim. Queimo o verde, o mato, a carne, o chão. Carbonizo. Estalos de madeira em sinfonia, nacos de minha carne que alimentam de carvão bichos famintos e feridos.
Ardo. Queimo por terra e por ar. Cavo rios de lava; risco o céu de fumaça e podridão. Os vapores fétidos me levam a todo canto: nuvens podres carregadas. Choverei tóxica, mas só depois. Olhe bem: já está escuro!
Dancing with myself
escuro
e luz
e música
rímel escorrendo
em suor e lágrima
enquanto danço
em frente à janela;
copo cheio
pra apagar
aos poucos
o batom borrado
corredor sombrio e comprido
até o banheiro
vou e volto
vou e volto
pra marcar o tempo,
espera
pra passar o tempo,
retomar o fôlego
e a linha
analgésico dissolvendo
no vinho,
no estômago vazio
pra dor fina que grita baixo
e sempre:
cárie, úlcera e saudade.
Epitáfio a um homem comum
O homem sem camisa subiu a ladeira sem pressa, um tipo fora da engrenagem, máquina de vencer distância, apenas, ora subindo, ora descendo. Pedestre. Andarilho. Mais silêncio que notícia, quase vulto. Homem avulso no cenário, marca sem rotina da rotina, costume e susto. Passo que é poema na pedra, nos pés, na frequência com que cruza, de ponta a ponta, a rua, esquina, quarteirão. Passo que de súbito foi suspenso: parou, cessou o percurso, caiu. Sem mais.
Filme ruim
As ruas ficaram vazias, inundadas de um medo silencioso, invisível e debilitante. Das casas, ecoam notícias abafadas de televisões que nem se apagam mais. Encharca-se de informação, álcool e distância. O ar fede a desconfiança, as esquinas se empesteiam de isolamento, ninguém se vê. Na janela dos poucos ônibus, nos olhos de cada um, o medo do outro, da rua, de um sintoma qualquer, seu
ou do vizinho. O perigo está no chão, no ar, nas mãos, e nem todos podem se trancar. Uma onda invade aos poucos a cidade, levando carros, árvores, casas,
e ainda não se vê. Ninguém está seguro, ninguém pode ajudar.
Parece um filme ruim.
Metade
Esse arrepio agudo
revela meu segredo:
hoje sou metade medo.
Claudia Baeta Leal. Professora, pesquisadora, mãe e servidora pública nascida sob o signo de sagitário. Paulistana e corintiana expatriada no Rio de Janeiro, no aprendizado de novas paisagens, jeitos e ritmos. Poeta sempre que pode, espremendo poesia nas horas vagas e intervalos do dia a dia, que permitiram o livro "Itinerário: ida e volta", poemas publicados pela Editora Letramento em 2019.
Ilustração: Incêndio no Parlamento, Willian Turner.
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