Self-Service
Por Cecília Gomes
Tentei. Com muito esforço tentei. Não era possível sua abertura de tão velha que já estava. Restavam no casarão da dona Júlia pouquíssimas janelas que não emperrassem. A da sala acabara de emperrar.
Obra de Michelangelo que integra as pinturas que compõem o teto da Capela Sistina
Dona Júlia acordou cedo, provavelmente com a barulheira que eu havia feito e, após um cordial bom dia, disse que acordara com o canto dos pássaros. É o que lembro da primeira manhã que passei na casa da dona Júlia. Morava de favor e, por isso, eu tinha algumas obrigações a fazer. Hoje, conheço a dona Júlia, seus hábitos, os quais preferia desconhecer.
Nossa casa ficava em pouco afastada da cidade, mais próxima do cemitério que da igreja. O vento mórbido, o cenário triste e a solidão das noites do casarão obrigavam-me a ir deitar assim que a noite caísse.
Eu já havia tentado fazer com que a velha senhora mudasse para uma casa no centro da cidade, próxima à igreja. A dona Júlia resistia dizendo que já não pecava mais e fazia suas orações em casa. Dizia que morar próxima ao cemitério era uma questão de praticidade.
Seu o dia era como de um velho qualquer. Cuidava de suas rosas, dava milho às galinhas e fazia outras tarefas que não lhe exigissem muito esforço. Depois que as tarefas eram cumpridas, dona Júlia ia dormir, almoçava e, espantosamente, retornava ao leito. Assim, era fácil cuidar da velha senhora.
Foi em uma das noites mórbidas que presenciei uma cena curiosa.
Eu estava indo deitar - um pouco mais tarde do que de costume - quando ouvi o barulho da porta emperrada abrindo-se. Era a porta dos fundos, porta que cansei de tentar abrir, sem nunca conseguir…
Fiquei preocupado. Passei um café e me pus a esperar pela volta da dona Júlia. Apreensivo, olhava para o relógio cuco, que virava os ponteiros com pressa. O tempo passava.
Quase a cochilar, suando meu nervosismo, ouvi novamente a porta. Corri até o fundo. Lá estava ela, com um estranho sorriso em sua face enrugada. Carregava uma sacola de feira com embrulhos de jornal e uma garrafa de vinho. Perguntei a ela aonde havia ido. Simplesmente respondeu-me que havia ido a feira.
Feira? Mas que diabo de feira a essa hora da noite? Ela seguiu para seu quarto e fechou a porta. Minutos depois ouvia risadas inocentes de uma velha de mais de 75 anos. Dormi preocupado.
Esta noite, os ponteiros do relógio giraram freneticamente. A ansiedade tomou conta de minha calma. A porta abriu-se. Dona Júlia trazia uma rosa murcha em sua boca. Observei a velha como um cão farejador. Vejo sua bota suja de lama e barro.
A sacola. Queria enxergar o que estava embrulhado. A sacola era vazada. Foi então que caiu… Um dedo. Um dedo humano!
Fechou a porta. Ouvi a risada impiedosa com gosto de prazer.
Uma perna, um braço, um dedo. O tempo passa. Diante da janela, olho o cemitério. Até que não me parece tão mórbido assim.
Cecília Gomes é jornalista e atriz.
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