Obrigado, por não me dizer nada
Por Roberto Cardinalli
"Caímos em uma armadilha. Não posso escapar". Elvis Presley
Há três dias e três noites que não recebo notícias suas. É tão tarde que chega a ser cedo. Onde você está metido? Seus óculos estão na escrivaninha do quartinho desde que você saiu. Estranho, mas não lembro quando você começou a usar óculos. Ainda está na minha memória o dia que você bateu na porta da minha casa para me vender um livro. Carregava uma mochila com alguns exemplares que nunca tinha ouvido falar. E só vendia os livros que tivesse lido e gostado. Foi seu compromisso com a editora para aceitar o trabalho.
Não sei porque, mas insistiu tanto para que eu comprasse “O Túnel”, do argentino Ernesto Sabato. Li várias vezes, e só no último ano entendi alguma coisa. Posso me desculpar; várias vezes fui insensata com você. Você era um excelente vendedor. Ou talvez um grande sedutor?
Só saberia que era divorciado na manhã seguinte e que me faria uma promessa para ser quebrada no momento oportuno.
Na sexta-feira seguinte me levou a um piano bar que havia no segundo andar na Coronel Quirino, uma quadra antes da Moraes Sales, que hoje se tornou uma loja de roupa para grã-fina. Me puxou para dançar quando tocou "Take the A Train". Ficamos olhando nossos lábios quando o pianista cravou “As time goes by”. E antes de dormimos juntos naquela primeira noite foi inesquecível você colocar “One more kiss, dear”, do Vangelis, e que foi tema de Blade Runner. Naquele momento cheguei a pensar que você poderia ser um mutante, um replicante, ou sei lá o quê. Só saberia que era divorciado na manhã seguinte e que me faria uma promessa para ser quebrada no momento oportuno.
Passei as últimas horas procurando algum vestígio. Pistas por toda a casa. Revirei suas camisas de ponta cabeça. Mexi nas suas coisas. Sei que vou levar uma bronca, mas me sinto responsável por você. No cesto amarelado procurei os motivos para levarmos a roupa suja. Mesmo com as coisas vagas que eu te dizia, eu era feliz.
Tomei umas esperando que você aparecesse de repente no meio daquela porta de ferro, abriria o freezer e traria a mais gelada.
Desci correndo as escadas e fui te procurar no Morte Dura. Sabia que em algum momento você passaria por lá. Tomei umas esperando que você aparecesse de repente no meio daquela porta de ferro, abriria o freezer e traria a mais gelada.
Cumprimentei alguns conhecidos que vi algumas vezes na roda junto contigo. Quando fui ao banheiro dei de cara com um deles. Perguntei de você, mas ele disse que há um bom tempo não passava por lá. Não sei porquê diabos ele estava puto contigo. Você fez alguma coisa. Tá aprontando por aí?
Voltei para o apartamento. Imaginei que você poderia estar numa rinha de galo. Você sempre me dizia que gostava de apostar nos mutucas. Demorou meses para você me explicar que esses eram os galos mais ordinários do terreiro. Você ia cedo, acompanhava até a colocação da botoqueira. “São aquelas buchas que vão nas esporras do galo de treino”, me ensinava.
Não é possível que você esteja na casa daquela outra mulher, seu cretino. Desde que você foi atender ao pedido da Justiça para ajudar aquela mundana você ficou diferente.
Tenho certeza que você estava lá, vibrando com a botada, o cotejamento que os animais fazem, como que se estudando, na rinha. E delirando quando um deles desabasse totalmente tucado. Tomamos muitos porres juntos com o fruto da bolada do rinheiro. Juro! Se soubesse onde é, teria ido te procurar. Por quê nunca perguntei o endereço da rinha? Sou uma mulher de modos e iria ficar constrangida com os olhares cabulosos dos “homi”, mas juro pela minha mãe que estaria aí ao seu lado.
Não é possível que você esteja na casa daquela outra mulher, seu cretino. Desde que você foi atender ao pedido da Justiça para ajudar aquela mundana você ficou diferente. Você devia saber que ela não vale os olhos da cara. Desde então você não sente mais meu cheiro e nem o meu gosto. Que aconteceu? Sabe que abri aquela intimação e fui até aquele antro da perdição. Pena que não tinha ninguém lá. Não sei o que aconteceria se desse de cara com a megera. Iria arrancar todos os seus cílios, um por um, sem dó e piedade.
Pelo amor de deus, me fale; está chegando? Preciso tirar o bife do congelador, depois bater e colocar para assar. Queria preparar seu prato favorito. Sei que você gosta de bife a cavalo com ovo cozido com gema mole. Sei que centenas de vezes você me pediu para calar a boca. “Obrigado, por não dizer nada”, implorava, quando me excedia nas nossas brigas e palavras jogadas ao vento.
Eu sabia que algo ia de fato acontecer em breve e tinha pouco tempo para acertamos às contas com o passado. Aquela sua febre estava muito estranha e mal explicada. Começou num sábado à tarde, perto do feriado de Sete de Setembro, enquanto você cochilava no sofá e com o copo de Negroni no chão quase no final. No Youtube da smart TV rolava “Suspicious Minds”. Nem aquele banho gelado resolveu. Na semana seguinte você saiu de casa e nunca mais voltou. Disse que precisava ir ao médico. Não estava conseguindo mais ler, e se fosse assim, iria pedir demissão. Volte logo, por favor, preciso pagar o aluguel.
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor e cronista. Autor do livro "Delírios do Isolamento".
Ilustração: Mulher Sentada, de Egon Schiele.
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