Sinto muito
Por Roberto Cardinalli
"Se você está morrendo, todo mundo passa a te amar". Dr. House
Sinto muito, mas preciso te dizer isso. Todas as principais decisões da minha vida, eu estava bêbado.
O quê, respondeu ela. “Não entendi direito.”
“Quem é você. Posso te pedir uma coisa. Lave minha cabeça”, perguntou ele.
“Meu copo ainda está cheio”, respondeu ela.
Era começo da tarde e Santino e Guadalupe ainda estavam na cama. Santino acordou um pouco mais cedo de ressaca e ficou olhando para o teto. Depois foi até a sala pegou a garrafa de Jack Daniels, que estava sobre a mesa, e levou para o quarto. Quando Guadalupe acordou viu a garrafa em cima do criado-mudo e despejou no copo ainda com água, do gelo derretido da noite anterior.
“Sua mãe está em casa”, perguntou ela.
“Você não devia estar aqui”, respondeu ele.
“Para todos os efeitos, eu morri esta noite”, completou.
“Você é capaz de avisar todo mundo”, insistiu.
Santino nunca havia dormido com uma mulher de olhos verdes. Sim, olhos verdes. Morena, cabelos cumpridos, magra e olhos verdes.
Agora dava para perceber a calcinha preta e os seios estalados para cima.
“Você jantou ontem. Quer comer alguma coisa”, perguntou ela.
“Não. Só quero que me lave a cabeça”, respondeu ele.
Guadalupe voltou a fechar os olhos.
“Não vou machucar você”, prometeu ele.
De repente ela abriu os olhos. Piscou três vezes. Ajeitou o travesseiro na vertical no encosto da cama, e sentou para tomar mais um gole de uísque.
“Você está sonhando”, perguntou ela, meio que assustada.
“Hoje ainda é sexta-feira.”
Santino e talvez vocês não entenderam o que ela quis dizer com isso. Que tem a ver o fato de hoje ser sexta-feira. E com os pés Santino empurrou Knulp para fora da cama. O livro de Herman Hesse fez barulho ao cair no chão.
“Não gostou do livro”, perguntou ela, tombando sua mão sobre Santino.
“Você não me deixou ler”, respondeu.
“Eu gosto que me conte histórias de livros”, pediu Guadalupe.
Lágrimas de uísque escorrem pelo corpo dela, como uma correnteza, transbordando no umbigo.
Ela parecia satisfeita.
“Por que você disse ontem que estava com a peste”, perguntou ela.
“Não vamos nos torturar”, respondeu.
“Então quer dizer que estou presa nesse beco”.
Ele riu. Pensou em dar um esporro. Mas seu corpo tremeu. Tomou mais um gole.
“Isso é uísque ou ácido. Tem algo estranho aí”.
Pela primeira vez percebeu a agradável sensação de sentir o gosto do nada.
“Dormir é como morrer. Você não sabe nada que ocorreu naquelas horas. É só não acordar e pronto”, filosofou.
“O senhor devia se controlar”, disse Guadalupe.
“Não sei mais o que podemos fazer hoje. Acho que fizemos tudo ontem”, emendou.
“Lave minha cabeça, por favor”, pediu Santino.
“Lave a minha cabeça”, ordenou Santino.
“Ou vá para casa.”
Ela abriu a bolsa, retirou o estojo de maquiagem e tirou o espelho. Arrumou os cabelos. Colocou o travesseiro de volta na horizontal. Virou-se de lado e deitou novamente.
“Pare de trapacear”, reclamou Santino, enquanto Guadalupe fechava as pálpebras.
Ela se virou e deu um beijo na testa dele. E outro no lado direito do rosto. Tentou algo mais...
“A gente... Sabe?”, cochichou.
O telefone tocou. Ninguém quis atender.
“Pede para ninguém vir hoje”, apelou Guadalupe.
“Fala mais alguma coisa”, disse ela.
“Uma coisa de cada vez”, afirmou ele.
“Você fechou a porta da sala ontem”, perguntou Guadalupe.
“O que te incomoda”, vociferou ele.
“Então tá. Vou falar”, disse ela. “Qual perfume que você mais gosta”.
“O da minha próxima mulher.”
Roberto Cardinalli é jornalista, escritor e cronista. Autor do livro "Delírios do Isolamento".
Ilustração: Morte e Donzela, de Egon Schiele.
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