2100 - Uma odisseia na cidade
Por José Alexandre Cury Sacomano
Era mais um dia de trabalho para Stanley Hall que caminhava sob a
garoa fina de São Paulo em direção à redação do maior jornal da cidade onde
trabalha- o “Metrópole S.P.”. Hall é “repórter fotográfico” desse jornal que
resiste ao tempo e, em pleno século 22, apresenta uma tiragem diária de mais
de 300 mil exemplares impressos por dia. Claro, o “papel” é uma mistura de
plásticos tratados, resinas e papel celulose, tudo reciclado. Não é mais feito de
celulose pura e a qualidade mesmo assim é muito boa... (a prova d’agua, não
amarelava, não rasgava, nem amassava e era biodegradável).
Como todo bom repórter fotográfico, Hall caminhava com seu olhar
atento observando sempre os detalhes das ruas, das pessoas, do trânsito e da
cidade de modo geral. Já eram 09h30 da manhã, e sob aquela garoa fina Hall
chegava ao jornal. Mas os repórteres fotográficos de hoje não andam mais
pela cidade com seus coletes típicos, cheios de bolsos e suas malas pretas
com o equipamento fotográfico. Acabou a figura do fotógrafo com a máquina
na mão. Hall faz diariamente a cobertura dos fatos que acontecem na cidade,
produz fotos de vários locais da cidade, mas nunca mais segurou uma máquina fotográfica.
Os fotógrafos de hoje, trabalham sem a máquina na mão e sem a necessidade de circular pela cidade.
A partir de 2070 surge uma nova tendência mundial de cobertura
fotográfica para os poucos jornais impressos que ainda restavam. O sistema
de câmeras do New York Times foi fundado em 2074 na Copa do Mundo dos
Estados Unidos, onde o jornal fez a cobertura de todo o campeonato, dentro da
própria redação. Todos os estádios tinham câmeras que iam muito além do
campo, da torcida e das salas de entrevistas. A partir daí, vários jornais do
mundo, principalmente os das grandes cidades, começaram a utilizar um
sistema de câmeras distribuídas pela cidade, utilizando cada vez menos as
máquinas digitais, veículos para deslocamento e a figura do próprio repórter
fotográfico que, neste novo contexto, acabava de ser reinventada. Hoje, em
2100, os jornais ainda utilizam câmeras digitais tradicionais para uma cobertura
ou outra, mas a maioria das imagens chega via sistema de câmeras ou através
do jornalismo participativo. O jornal “Metrópole S.P.” possui um sistema para recepção de imagens dos cidadãos e dos leitores, que gerencia as mesmas por
assuntos, qualidade jornalística e técnica, e disponibiliza uma boa quantidade
para possível publicação. Sessões da câmara dos vereadores, jogos de
futebol, manifestações, trânsito, festas, shows, teatro... Em todos os lugares
veem-se câmeras do jornal “Metrópoles S.P.” Os fotógrafos de hoje, trabalham
sem a máquina na mão e sem a necessidade de circular pela cidade.
Hall e outros desses novos fotógrafos controlam um sistema de câmeras
fotográficas espalhadas e instaladas estrategicamente por pontos nevrálgicos
da cidade, em cima de edifícios, pontes, torres, ruas, locais públicos e privados,
de tal modo que, cada repórter chega a operar mais de 200 máquinas
fotográficas, obtendo imagens de vários locais, pessoas, acontecimentos e situações, sem sair da redação.
Tudo que um repórter fotográfico fazia nas câmeras digitais, o operador pode fazer através do sistema Big Brother.
É uma tendência que começou aqui em São Paulo, no “Metrópole S.P.” por
volta do ano de 2085 e hoje, em 2100, tem-se um conjunto de 2.000 câmeras
espalhadas pela cidade em diversos pontos, um sistema que controla todas as
câmeras, apelidado de Big Brother (referência a George Orwell), e uma
equipe de repórteres fotográficos preparados. Profissionais como o Hall,
trabalham em pequenas salas perante enormes monitores, de onde como
voyeurs observam as imagens das centenas de câmeras. Fizeram uma espécie
de curso de “vídeofoto” para poderem operar o tal sistema, que permitia ao
“repórter fotográfico” ou operador efetuar inúmeros enquadramentos,
aproximações precisas com zoom de mais de 50 vezes, controle de exposição,
fotometragem, etc. Tudo que um repórter fotográfico fazia nas câmeras digitais,
o operador pode fazer através do sistema Big Brother. Estão sempre atentos
olhando várias telas em busca de informações através das imagens. Quando
algo diferente acontece na cidade e aquilo tenha interesse público, Hall
enquadra a cena e aperta o disparador no computador.
Passava das 11 horas, a reunião de pauta já havia terminado e ele já tinha
mais ou menos, o roteiro de suas atividades para aquele dia. Na verdade Hall
tinha três ou quatro pautas fotográficas para cumprir, dependendo se uma delas iria ou não, para a equipe de PhotoDronne.
O “Metrópole S.P.” também tem o departamento de “PhotoDronne” que é
vinculado a editoria de fotografia. São cinco Dronnes de última geração que
fotografam e filmam, além da equipe de fotógrafos operadores formados.
Desde implosões de prédios, jogos de futebol, campeonatos de surf, incêndios,
etc. O Dronne é um ótimo aliado para o fotojornalismo, principalmente em ações de risco.
A primeira pauta falava sobre as dificuldades do pedestre após a Prefeitura
liberar a instalação de mil “barracas” de venda de alimentos e outras
mercadorias, no centro de São Paulo especificamente na Republica e no
Anhangabaú. A pauta tinha uma angulação no sentido de mostrar o quanto
ficou difícil para os pedestres, uma vez que tiveram seu espaço bastante
reduzido. Hall fez uma breve análise da situação de alguns lugares, olhou
inicialmente para umas 30 câmeras e rapidamente percebeu alguns pontos que
deflagravam as barracas prejudicando os pedestres. No entanto, eram
11h50min, e por volta das 17h o local estaria mais cheio. Não era o momento
de fazer aquelas fotos. Continuou olhando para mais algumas câmeras e
explorando toda região da Praça da Republica e do Vale do Anhangabaú.
Após alguns minutos Hall localizou uma situação onde pedestres saiam da
calçada, andavam alguns metros na rua e voltavam para calçada, para desviar
das barracas. Ele fez um enquadramento bem fechado, justamente no ponto
mais estrangulado da calçada, e deixou a câmera gravando em alta definição.
O sistema gravaria até às 17 h, quando Hall voltaria para fazer outras imagens do local com mais pedestres.
As micro câmeras que compunham o sistema Big Brother tinham um zoom e sistema de controle extraordinários, que Hall conseguiu, dentre centenas, fotos nítidas da face de um dos traficantes.
Hall almoçou no próprio jornal e por volta das 13h30min voltou a sua sala cheia
de monitores, mais de 50 e todos divididos mostrando as imagens das diversas
câmeras. Hall tinha agora que fazer imagens para sua segunda pauta. Tratava-
se do tráfico de cognnicting nas margens da Rodovia Bandeirantes, próximo ao
Pico do Jaraguá. Nesta pauta Hall fez o trivial, umas imagens de alguns carros
parando no acostamento da pista e em poucos minutos sendo abordados pelos
traficantes, que levavam o cognnicting consigo, negociavam debruçados nas
janelas dos carros, e saiam, tanto o comprador quanto o traficante sem
nenhum problema, em plena luz do dia. O cognnicting já estava há uns 15 anos no Brasil, uma espécie de acelerador do metabolismo cognitivo cerebral
que melhorava o raciocínio, a memoria, a lucidez e a ligeireza de pensamento e de correlação.
As micro câmeras que compunham o sistema Big Brother tinham um zoom e
sistema de controle extraordinários, que Hall conseguiu, dentre centenas, fotos
nítidas da face de um dos traficantes. No entanto, a foto publicada seria mesmo
de um carro no acostamento com um sujeito debruçado na janela. A imagem
ainda enquadrava um pedaço de placa de transito, indicando a saída para o
Jardim Jaraguá, o que melhorava ainda mais as imagens, devido à referência espacial.
Por volta das 16h30min, após um lanche oferecido diariamente pelo “Metrópole
S.P.”, Hall verificava o filme do local crítico para os pedestres na região da
Praça da República, gravado em alta velocidade, e foi surpreendido com um
flagrante de atropelamento. Imediatamente voltou para a câmera em tempo
real e verificou o local, que estava sem as barracas na calçada e com uma faixa rente ao meio fio.
Voltou para as imagens gravadas e localizou exatamente o momento em que
um carro atropela um pedestre que, às 15h58min, teria invadido a rua. Hall
observou todo o filme, fez vários frames (fotos), inclusive do resgate. Entregou
várias imagens das duas pautas para o editor e estava indo embora para casa,
pois a última pauta do dia, cobriria de sua própria casa. Era o jogo do São
Paulo contra o Vasco, no Morumbi que iniciaria às 22 h.
A revista prezava por um trabalho fotográfico de qualidade e neste caso, Hall teria que voltar a fotografar com as câmeras digitais ou filmes eletrônicos, além da odisseia de circular atrás da informação pela imensidão da cidade.
Saindo do “Metrópole S.P.” e voltando para casa às 17h, Hall concluía que
aquele dia não tinha sido dos piores; afinal, uma das pautas acabou sendo
transferida para a equipe de PhotoDronne – tratava-se da entrega da nova
Ponte das Bandeiras, de dois andares de vias, após dois anos de reformas. O
ato oficial com Prefeito, Governador dentre outros seria na própria ponte, uma
ótima ocasião para o uso dos Dronnes -, e a outra pauta, a do jogo, deveria ser simples. Teria sido um dia fácil.
Quase no final do segundo tempo e Hall já tinha selecionado as fotos dos dois
gols do Vasco sobre o São Paulo. Também tinha enviado para o jornal algumas fotos da torcida e algumas dos técnicos. Só aguardava o final do jogo... quando
toca seu telefone. Um amigo lhe dizia que uma publicação editorial sofisticada,
iria lhe oferecer uma vaga como repórter fotográfico, para ganhar quase o
dobro. A revista prezava por um trabalho fotográfico de qualidade e neste caso,
Hall teria que voltar a fotografar com as câmeras digitais ou filmes eletrônicos,
além da odisseia de circular atrás da informação pela imensidão da cidade.
No instante ele não sabia o que falar. Desligou, o Vasco ganhou e Hall ficou
com tal pensamento na cabeça. Voltar a fotografar com câmeras em uma
odisseia pela cidade ou continuar gerando imagens através dos sistemas do “Metrópole S.P.”?
Hall, como todo dia, para adormecer, colocava em um canal de filmes antigos.
Naquele dia estava passando um bem antigo, com mais de 100 anos, um tal de
“2001, uma odisseia no espaço”. Naquele instante Hall, filho de Hall 9000 fechava os olhos e dormia ao som de Danúbio Azul.
Doutor em Comunicação pela Universidade Paulista - UNIP, Alexandre Sacomano já atuou na mídia impressa em veículos como Diário do Povo de Campinas, Primeira Página em São Carlos, além de diversas rádios. Atualmente é professor de jornalismo da Unip. Criador do Projeto Jornalismo Transformador e membro pesquisador do Grupo de Pesquisa Interdisciplinaridade Movimento e Transformação – INMTRA.
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