Vazio irreversível
Por Maurício Simionato
Havia um cavalo
de galope calado,
ilhado,
sobre o telhado
da casa alagada:
nem dourado, nem feliz,
nem fake, nem colorido, nem alado,
nem mesmo triste:
desaparecendo.
Trouxe consigo
um silêncio de alerta
para mostrar que algo
tornou-se tarde demais.
Antes do primeiro amanhecer,
sonhou em salvar-se
de precisar ser salvo
pelos homens.
No pesadelo da segunda aurora tardia,
achou que fosse um urso
raquítico a flutuar no mar, sem destino,
num bloco de gelo desgarrado.
Entre a terceira noite e o sol a pino,
delirou em ser
um tamanduá-bandeira
cercado por labaredas, afundando lentamente no chão.
Rente à madrugada seguinte, só
desejou trotar livremente
sobre as águas,
rumo a rios erráticos
No último dia, sequer sonhou,
soltou seu relincho engasgado
ante o raiar de um vazio
irreversível
Foi resgatado
numa manhã desamparada
de quinta-feira.
Mas até quando?
Foto: Inteligência Artificial gerada como sugestão de ilustração
Motivo
A Pedra pede
Água e
Nada mais,
além de tudo
O que vier
Por enquanto,
Caminho de
Só seguir
Destino que se
Oferece como
coisa dada, mera
Ocasião fatal
Presente que
não se pode recusar
De fato
Seria desfeita
Não ir
Pra onde se é
Levado
Mesmo que isso
Lhe pareça
Escolha, envolta
Numa surpresa
Que se apresenta
Na realidade,
Nem feliz
Nem triste,
Outrora impossível.
E nada mais.
Foto: Inteligência Artificial gerada como sugestão de ilustração
O sol turvo do infinito (entourage-rizoma)
Onde as margens
erguem suas brasas
paira o eterno que devora o sol
Esse ar opaco que respiro / encobre o último verso
do poema final.
“Quem é você na filados ossos,
afinal?”
Meu destino desatrelado
na poeira do tempo, como se não bastasse
vir-ao-mundo
Então, fica
o que não foi dito,
resta afiar as lâminas
dos dias passados, inalcançáveis.
Isso é forma de rezar,
de condensar a existência,
suspirar o infinito.
Na terceira margem
das entrelinhas irrompe um deus selvagem
que sabe sofrer
entre pássaros de fumaça
Foto: Inteligência Artificial gerada como sugestão de ilustração
Sem estrelas
Recolhidos estes utensílios inúteis
dentre eles, poemas perdidos,
alfinetes enferrujados e protetores auriculares,
sobra o tempo para
outras paisagens desaparecem
aos poucos. Esse turbilhão
incontroverso leva consigo
pessoas que amamos,
recortes de jornais amarelados,
bilhetinhos desbotados, e o resto.
Lembranças somem, incluindo
as minhas, que já não estão
nestas entrelinhas,
as suas, que estão bem aqui,
os sonhos, que surgem de passagem,
e os pesadelos, que se derramam ao amanhecer.
A vida a se mover
como um jogo de amarelinha,
após o temporal.
Atmosferas proféticas ofuscam os horizontes de Sísifo.
Gravidades afastam toda a gente,
as puxam, as soltam, as prendem,
as agarram, as desgrudam,
as controlam, as ascendem.
Aqui, cessam as tentativas de fuga,
tal pássaros em pleno voo.
Não haverá mais a memória do hoje
daqui um século.
Estes são modos de estar num mundo
em desconstrução e, por ora,
desprovido de estrelas.
***
A URRO! publica com exclusividade essa seleção de quatro poemas que estão no novo livro de Maurício Simionato, editor dessa revista digital de cultura e artes. O livro, cujo título provisório é “Poemas de sobremesa para assistir ao fim do mundo”, será publicado no primeiro semestre de 2025.
Maurício Simionato é poeta e jornalista. Como poeta, lançou os livros Impermanência (2012) — selecionado pela Secretaria de Cultura de Campinas —, Sobre Auroras e Crepúsculos (Multifoco, 2017) — lançado na Bienal do Livro do Rio/2017 —, e O AradO de OdarA (Uma distopia tropical) (Patuá, 2021). O autor também tem poemas publicados em diversas revistas especializadas em literatura, assim como em mais de 15 antologias poéticas. Foi três vezes finalista do Prêmio Off Flip (2020, 2021 e 2023) e, ainda, finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (2019).
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