Cacos Poéticos Urbanos
Por Maurício Simionato
Neste artigo busquei estabelecer uma interlocução com autores que tratam de temas na intersecção entre poesia, semiótica e o estudo das imagens, como Didi-Huberman, assim como se perpassa por temas que precedem a Hipermodernidade, tais como o Modernismo, o Pós-modernismo, além de movimentos brasileiros de vanguarda, como o Movimento Modernista, o Concretismo, o Poema Processo, a Poesia Praxis, a Poesia Visual, a Poesia Marginal.
Cabe citar a influência a partir da definição de Hipermodernidade traçada pelo filósofo Gilles Lipovetsky, que classifica uma nova face do pós-modernismo, além de recorrer a autores da chamada Análise do Discurso como possibilidade de apoio nas análises destas peças de ruídos urbanos.
Fruto da dissertação de mestrado “Identificação dos ‘Cacos Poéticos Urbanos’ e sua caracterização como hiperconcretismo”, apresentada em 2022 ao IEL (Instituto de Estudos da Linguagem) e Labjor (Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo), da Unicamp, esse texto destaca as noções de autoria e de silêncio, abordadas no contexto de fundo pelo redimensionamento de sentidos alvoroçados pela visão urbana no cenário de um mundo pandêmico e/ou pós-pandêmico.
Há, ainda, uma intersecção com os ready-mades, de Marcel Duchamp, e com a chamada Glitch Art, uma prática artística de subversão, conhecida também como estética da falha digital. Porém, ao contrário da Glitch Art, a falha urbana geradora da arte Hiperconcreta é literalmente concreta e não digital, pois pode ser tocada a céu aberto enquanto se transita pelas ruas e praças.
Entranhas das ruas
A interpretação das entranhas das ruas é um dos aspectos que se encontram no Hiperconcretismo aqui proposto. Suas estranhezas, manchas, cascas e silêncios urbanos são realçados, mas não definidos por completo, pela circulação de pessoas nas ruas, ressaltando as imagens estudadas em uma dimensão de texturas de abandono e de degradação, em uma poética ainda mais desfigurada e inserida em um aspecto de subcapitalismo decadente.
Desta forma, surge a proposta de investigar tais mensagens por uma lente na qual o filtro se classifica aqui por Hiperconcretismo Poético, por traçar linhas que permitam investigar estes Cacos Poéticos Urbanos, que sãos as mensagens surgidas em meio aos ruídos e ruínas do que restou e se transmutou nas calçadas.
Pode-se destacar como Hiperconcretismo Poético a “efemeridade concreta” que há nesta poesia desfigurada urbana, presente em diversos postes, muros, placas, portões e demais espaços abertos de passeio público. Essa visão constitui um aspecto multifacetado que se depara com uma espécie de surrealismo espontâneo das vias públicas, que configura uma exposição de ready-mades mutantes a céu aberto, de ressignificados que envolvem caligrafias e fontes de letras das mais diversas vertentes, todas elas sobrepostas, rabiscadas, rasgadas ou mesmo, ‘em cacos’.
Configura-se, então, o objeto do estudo, como um estranho ‘zoológico semiótico dos ruídos’, também mutante pela dinâmica natural do espaço-tempo. A mensagem colada no poste hoje não é a mesma mensagem desgastada no poste de amanhã. Daí a importância de se destacar esse tempo linear histórico, que se transforma e se retransforma a tudo e a todos que o observam, e que são observados ao passarem diante destes Cacos Poéticos Urbanos.
A ideia da pesquisa foi ampliar a visão do que se tratam estes fragmentos de elementos perdidos nas urbanidades e no universo hipermoderno das veias e vias do cotidiano. Pretende-se usar como base algumas imagens localizadas nestes espaços e registradas por meio de mais de cem fotografias tiradas ao longo dos anos de 2020, 2021 e 2022.
Meu objetivo foi identificar se aquele “Caco Poético Urbano”, que foi transformado de forma inconsciente pelo homem e/ou pela ação do tempo (linear ou climático), pode possuir uma interpretação poética e se esse aspecto da forma pode ser associado aos diferentes estilos e escolas artísticas de vanguarda com ramificações que perpassam a poesia visual, as artes plásticas, o grafite, as pichações e as demais artes gráficas.
Mas, o que interessa aqui, é apenas a sobreposição e a mistura caótica disso tudo. Não se trata de catalogar os tipos de artes já pesquisados, mas de identificar um possível olhar poético que também compõe esta floresta urbana das inconsciências. Capturei, para isso, a ideia Deleuziana de “esgotar o possível para que novos possíveis sejam criados”.
Há ainda que se atentar ao conceito de ‘inconsciente coletivo’, de Carl Jung, que nos permite observar como as pessoas continuam a deixar suas marcas nas ‘rochas’ da hipermodernidade, que hoje são representadas por paredes, muros, placas, postes e monumentos.
Minha intenção foi propor uma visão abrangente sobre o tema, além de destacar a importância de transformar as maneiras e as formas de se olhar e de se observar, por meio de possíveis outras lentes, ângulos e focos, as coisas que cercam o cotidiano das pessoas dentro dos espaços públicos das cidades.
Para isso, pretendi formular uma proposta dos, já citados acima, CPUs, ou Cacos Poéticos Urbanos, catalogando e identificando os diversos tipos de possibilidades de ocorrência dentro de suas características fundamentais, que são as efemeridades, as mutações, as sobreposições, as aleatoriedades, os ruídos, as manchas e as possíveis intenções de fundo transfiguradas para essas coisa-urbanidades que se apresentam como ready-mades concretistas espalhados pelas cidades.
Propõe-se que os CPUs são as peças centrais do conceito definido como Hiperconcretismo por ocorrerem em ambientes exclusivamente de convivência urbana e em áreas sempre abertas à circulação do público e em um ambiente de esquecimento urbano. Essas interferências poéticas são caóticas, fragmentadas, exclusivas e únicas (não podem ser reproduzidas em escala, a não ser por meio de um registro fotográfico).
Podem ser provocadas pela ação do tempo (sendo subdivididas por Tempo Imediato ou Tempo Histórico), pela ação da luminosidade do momento da captura da imagem (influência da luz na mensagem) ou pela ação dos seres vivos (que podem rasgar, rasurar, arranhar, ou mesmo rabiscar a peça estudada e caracterizada como CPU).
Neste ponto, e catalogada ao ser registrada, transfigura-se imediatamente aquela imagem inicial em outra, agora transformada definitivamente em um autêntico CPU, peça central e fundamental para a interpretação do Hiperconcretismo.
A sobreposição ruidosa de signos, significados, significantes, ícones e símbolos é o cerne desta poética transfigurada, aqui definida como “hiperconcreta”, e que se dispõe como uma consequência espontânea dos movimentos de vanguarda, como o Modernismo, que se consolidou nas vanguardas e se transfigurou no pós-modernismo até ser identificada nas cidades neste atual tempo da hipermodernidade, caracterizado por um amálgama de mensagens destroçadas e embaralhadas caoticamente pelas ruas e calçadas. Não há um sentido único nestes cacos formados por ruídos, mas é na aparente falta de mensagem que se revela uma das características do Hiperconcretismo: a metáfora dos tempos atuais.
Como objeto de referência de localidade e dimensão, coube me definir a investigação de tais imagens ocorridas na região central de uma grande metrópole brasileira. Neste caso, a área escolhida foi a região central de Campinas, e declarado, em 2019, a primeira metrópole brasileira a não ser uma capital de Estado. A cidade conta com aproximadamente 1,1 milhão de habitantes, segundo dados do IBGE de 2020.
Dinheiro!
A hipermodernidade silenciosa dos ruídos urbanos
A rua é o palco onde estas mensagens aleatórias são transmisturadas em diversos signos aleatórios, significados difusos, significantes distraídos e símbolos corrompidos pelo homem e/ou pelo andamento do tempo linear com todas as suas intempéries. São mensagens criadas e recriadas que surgem da tentativa de venda de algum serviço, manifestações de protesto, juras de amor ou mesmo aspectos do individualismo (no que se entende pela simples pichação do nome ou do próprio apelido, por exemplo).
Neste sentido, o filósofo francês Gilles Lipovetsky (2004) apresenta seu conceito de hipermodernidade no livro “Os tempos hipermodernos”, que pode ser usado para ilustrar a caracterização dos Cacos Poéticos Urbanos aqui analisados. No caso, o termo “hiper” é utilizado pelo autor em referência a uma exacerbação dos valores criados na Modernidade, atualmente elevados de forma exponencial.
Hipermodernidade: uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer. (Lipovetsky, 2004, p. 26)
“O império do efêmero”, nome de outro livro de Lipovetsky (1987), também está nas ruas. Nele, o autor retrata a existência de uma cultura do excesso, o mesmo excesso presente nos meios urbanos, derivando rumo ao que se pretende caracterizar como “Hiperconcretismo” nesta pesquisa, como uma das variações poéticas experimentais deste momento atual, que ultrapassou a pós-modernidade, porém, não menos crítica à sociedade quanto o pós-modernismo.
Enquanto os grupos ou categorias sociais vinculados às tradições conseguem harmonizar de forma mais ou menos bem-sucedida seus anseios respectivos, restringindo assim a amplitude da decepção experimentada, os grupos ou categorias sociais hipermodernos emergem como sociedades da decepção inflacionada. Quando a felicidade é prometida a todos e os prazeres são enaltecidos em cada esquina, a vida cotidiana está passando por uma dura prova. Além disso, a “qualidade de vida” em todos os campos da atividade humana (vida conjugal, vida sexual, alimentação, moradia, meio ambiente etc.) passou a ser o novo horizonte das expectativas individuais. (Lipovetsky, 2007, p. 05)
Para que se avance sobre o conceito de Hipermodernidade, é preciso buscar uma definição formulada por Gilles Lipovetsky em uma entrevista concedida a Carla Ganito: “‘hipermodernidade’ é um modelo teórico para compreender o mundo contemporâneo. Este modelo baseia-se em três lógicas fundamentais: 1) o mercado; 2) a tecnociência; 3) e a cultura individualista democrática” (Lipovetsky; Ganito, 2010, p. 55).
A proposta de Hiperconcretismo
O conceito de Hiperconcretismo é fruto de uma intersecção entre a Hipermodernidade, de Lipovetsky, e a Poesia Concreta brasileira, gerando o que se pretende definir aqui como as bases de um Hiperconcretismo, que pode ser analisado do ponto de vista dos “Cacos Poéticos Urbanos”, identificados por uma busca constitutiva pelo olhar poético durante um passeio pelas ruas de uma metrópole.
Estes ruídos concretos urbanos são efêmeros por natureza, pois os ‘cacos poéticos’ mudam e se alteram continuamente pela ação contínua e frenética do homem ou do tempo, já que ficam expostos ao tempo e às ações humanas, por definição fundamental.
São ruídos que mudam e são alterados e transformados a cada instante por estarem expostos ao ar livre e sempre sujeitos à ação do tempo e dos seres vivos, sejam eles fungos, ou originários dos reinos mineral, vegetal ou animal.
Esse encontro entre a Hipermodernidade e a Poesia Concreta e/ou Poesia Visual se dá pelo sentido da existência, do impulso pela divulgação de informações e da geração e pretensa perpetuação de marcas individuais no espaço-tempo urbano de circulação, causando um acúmulo frenético de sobreposições de imagens aparentemente sem sentido. Estes mesmos ruídos sobrepostos e rasurados podem ser vistos como um tipo de poesia pós-concreta, na perspectiva de se encarar isso como uma espécie de treinamento contínuo do “olhar poético”.
Para consolidar a investigação desse Hiperconcretismo sugerido aqui, coube a leitura do Manifesto Concretista, escrito em 1956 pelos poetas e tradutores Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que são conhecidos como “irmãos Campos”, e o poeta e tradutor Décio Pignatari. Juntos, eles foram os responsáveis por criar as bases do Movimento Concretista dentro da poesia brasileira e mundial.
Diz um trecho do Manifesto que coincide com este estudo: “[...] de modo a justapor palavras e experiência num estreito colamento fenomenológico, antes impossível [...]”.
Como veremos um pouco mais abaixo, em sua íntegra, o Manifesto Concretista dita: “[...] o poeta concreto vê a palavra em si mesma - campo magnético de possibilidades como um objeto dinâmico, uma célula viva, um organismo completo [...]”.
Mas, é o Plano-Piloto para Poesia Concreta (Campos, Pignatari, Campos, 1958) que dá por encerrado o ciclo histórico da poesia apenas composta por versos. Neste sentido, os Cacos Poéticos Urbanos são uma continuidade deste modo de possível caracterização de uma peça poética que se cria nas aleatoriedades das ruas de uma espécie de hipermodernidade “fantasma”, mesmo que a palavra ou a letra estejam em ruínas, partidas e desfiguradas. Ao contrário do Concretismo, no entanto, há uma aleatoriedade na raiz constitutiva dos Cacos Poéticos Urbanos aqui estudados, por serem peças de múltiplas autorias e mutantes.
[...] poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutura. espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear, daí a importância da idéia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico (fenollosa/pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos. [...] (Campos, Pignatari, Campos, 1958, n.p.)
Análise de CPUs sob o olhar de Didi-Huberman
A sequência de quatro imagens abaixo, obtidas na rua Luzitana, no Centro de Campinas, integram uma peça de um projeto Feminista, como visto no canto inferior direito dos cartazes, credenciado como Projeto Sapatona. O primeiro cartaz traz a foto de uma mulher com um suave sorrindo e os dizeres: “Eu não quero aprovação. Eu quero respeito”.
A mensagem que se passa é a de que as mulheres não precisam de julgamentos ou aprovações sobre suas opções, sejam elas quais forem. A ideia é que o respeito, esse sim, é o que todas as mulheres precisam e querem.
O cartaz surge em uma área de grande circulação e em um período histórico, entre os anos de 2020 e 2022, no qual nunca se cometeu tantos crimes contra as mulheres. Durante a pandemia, apenas entre março de 2020, mês que marca o início da pandemia de Covid-19 no país, e dezembro de 2021, foram registrados 2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública/2021.
O cartaz se transforma em uma peça de Cacos Poéticos Urbanos ao se tornar uma metáfora destes tempos de violência contra a mulher. A metáfora se dá na falta de respeito dos cidadãos que rasgam o cartaz, transformando a mensagem em uma obra poética transformada, agora, nas ruas, em peça de resistência ao machismo.
A obra, então, desfigurada de seu sentido inicial, ganha maior sentido ao se expor à incompreensão in loco, transformando-se em outra mensagem ao se transfigurar do real proposto na mensagem original e anterior nesta modificada e exposta nas ruas da cidade, rasgada e danificada pela incompreensão dos homens.
No CPU em questão, a imagem arde. Nas palavras de Didi-Huberman (2014, p. 29), “a imagem arde quando toca o real”. Destaca-se que o CPU expõe uma verdade ainda mais crua do real constitutivo ao ser exposta e desfigurada nos meios urbanos de grande circulação de pessoas. Se para o autor “ver é sempre uma operação de sujeito”, há nas quatro imagens abaixo o movimento do olhar e do registro dessa intenção de provocar uma operação de desmanche, de inquietação e da busca, que a torna uma obra aberta do Hiperconcretismo.
Nas criações surgidas pelos registros de minha autoria, pretendi dar às imagens uma diferenciação em relação à imagem que foi concebida inicialmente. No caso em questão, das imagens capturadas e reproduzidas abaixo, há o ângulo da foto, a luminosidade e, principalmente, o título dado por este autor a cada uma delas, como sugestão de reconfiguração da visão poética.
Respeito?
Outra mulher
A dor de amar
Marielle Presente!
Inside (ados)
Inside
Pare?
Sejamos mais
Manifesto Hiperconcretista
- o Hiperconcretismo reflete crítica social a partir de imagens transfiguradas;
- sua caracterização se dá pela identificação dos CPUs (Cacos Poéticos Urbanos);
- surge da intersecção entre Hipermodernismo e Concretismo Brasileiro;
- é um ready-made a céu aberto;
- mancha, ruído e rasura de mensagens esquecidas nas ruas;
- existe apenas nos meios públicos urbanos;
- surge na sobreposição de imagens outrora “invisíveis”;
- apresenta uma poética desfigurada pela ação do homem e/ou do tempo;
- mutante porque se transforma a cada instante nas vias públicas;
- tem composição aleatória;
- possui autoria indefinida;
- está em cartazes rasgados e em placas pichadas ou rabiscadas;
- tem influências diretas da poesia visual e da Glitch art;
- é uma arte que surge a partir da falha em um meio concreto e não digital;
- propõe a expansão do olhar poético.
Dissertação do Mestrado “Identificação dos ‘Cacos Poéticos Urbanos’ e sua caracterização como Hiperconcretismo”, será um livro, em julho de 2023, publicado pela Editora Dialética. (clique aqui para ler o livro)
Maurício Simionato é jornalista e poeta.
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