A ingenuidade e o lúdico: recursos para ver a realidade
Por Paulo Cheida Sans
Desde a juventude percebi que Campinas era um grande seio cultural. Aprendi muito vendo as exposições que aconteciam em meados da década de 60 e início dos anos 70, onde pude conhecer grandes artistas, como Egas Francisco, Geraldo de Sousa, Francisco Biojone, Maria Helena Motta Paes, Raul Porto, Thomas Perina, Clodomiro Lucas e muitos outros.
Participava como expositor em mostras e salões de artes por inúmeras cidades e fui me adentrando no meio artístico, sendo considerado um menino prodígio nas artes, como mencionou Bernardo Caro sobre o início de minha carreira.
Sem dúvida, ter recebido inúmeros prêmios e ter exposto no MASP aos 16 anos com significativos artistas brasileiros que, muitos hoje, estão na história da arte brasileira, poderiam deixar uma empolgação para o resto da minha vida como sendo um grande artista. Mas, não é assim que funciona.
Até mesmo Picasso que foi um menino prodígio notório nas artes teve que se recompor e entender que, depois que atinge a idade adulta, isso de ser prodígio não conta. O que conta é sempre a produção diante de um cenário atual que emerge de valores em constante mutação e que o significativo passado fica preso somente à mente do artista. A sua imagem não é notada pela construção de seus feitos e sim vista sempre de modo parcial.
Claro que grandes mestres são estudados, valorizados e reconhecidos desde a tenra idade. Geralmente esses gênios são vistos assim com o tempo e, na maioria das vezes, depois de mortos, como foi o caso de Van Gogh que em vida não nutriu de reconhecimentos.
Por isso, ser artista não está na imagem e sim na produção pautada pela persistência e uma espécie de talento que faz da arte um meio de trabalho como se fosse um ofício comum, como acontece com qualquer trabalhador sério e responsável encontrado nos mais diversos ofícios e afazeres.
Assim, como um trabalho curioso a fim de galgar novos caminhos, a minha produção artística foi construída em meio a diversas técnicas e possibilidades criativas, desde o desenho, pintura, escultura, instalação e outras modalidades mistas. Além de trabalhar como educador, produtor cultural, curador e outras manifestações no meio artístico na promoção da arte e da cultura, percebo sempre que algo maior se manifesta em minha vontade como artista: manter-se fiel à gravura como essência da minha produção artística.
Essa persistência pela valorização da gravura me levou a significativos reconhecimentos por parte de bienais, museus e instituições culturais, sobretudo no exterior, que fez com que o meu trabalho como gravador fosse visto de fora para dentro e, atualmente no Brasil, também estou sendo representado nos acervos de importantes museus.
A minha produção como gravador se iniciou nas aulas do curso de Artes Plásticas que cursava na PUC-Campinas, numa disciplina ministrada pelo artista Bernardo Caro, em 1979. De lá para cá, permeando uma intensa produção artística de várias modalidades, fui mantendo na gravura a relação temática e a coerência estilística que foi sendo notada ao passar dos anos.
Produzi gravuras, a maioria em relevo, usando a madeira (xilogravura) ou a borracha (linogravura), fui compondo um recorte de mundo e o fiz com sátira, com certa ironia, criando obras com um leve ar de comicidade.
Ao mesmo tempo deixo transparecer o estar “preso” como se o homem estivesse impotente, “atado”, inserido nas situações sociais tolas e descabidas, tecidas por ele mesmo.
Essas gravuras têm uma coerência expressiva que as unem. O propósito ao realizá-las era que pudesse ter uma quantidade adequada para que uma gravura fosse reforçada por outra. Percebo que é o conjunto que cria a força necessária para evidenciar os conteúdos essenciais que as identificam e que também valorizam as características predominantes em cada obra.
O diálogo nunca cessa em nós mesmos, entre a sabedoria e a loucura, a ousadia e a prudência, o desprendimento e o apego, enfim, vivemos em uma tensão dialogal. Como diria Edgar Morin: entre o amor-poesia e a sabedoria-racionalidade.
Realizar uma produção que não fosse especificamente de humor, mas que carregasse uma espécie de comicidade, de ironia, e que estivesse inserida no contexto da arte contemporânea, que pudesse registrar uma certa denúncia sobre uma sociedade que condiciona valores, que nem sempre ajudam a boa convivência humana no contexto ético e moral, transparecia um amadurecimento temático, além, é claro, de ser também reduto de uma produção com marca particular.
Há uma seriedade e responsabilidade no ato de criar do artista, que o liga de modo intrínseco à sociedade, reagindo perante os acontecimentos que o permeia. Isso quer dizer que o artista é um ser político, que sente e reage perante os acertos e desacertos da estrutura social em que está inserido.
Nas obras, seres caricatos convivem com animais diversos. Esses seres imaginados parecem pertencer a um mundo similar ao nosso, vivendo em um esquema social que representa a época atual.
Entendo a sátira como crítica a pessoas e ou instituições e assim criei as gravuras sob aspectos variados, mas com referências análogas.
As alegorias das cenas são montadas em uma alusão ao lúdico, insinuando momentos infantis ou cenas de circenses, caracterizadas por uma construção de elementos substanciados pela ingenuidade. As cenas, embora representadas de diversos modos, induzem a um mundo condizente com o nosso, representado de modo ameno, mas que, aos poucos, induz o espectador a perceber que por trás das aparências está um mundo esgarçado, mais próximo do “submundo”.
O contexto total de cada cena permeia a sátira, a gozação de se fazer parte dos pequenos, do povo, em relação aos poderosos, e, ao mesmo tempo, a classe dominante está ridicularizada, transgredindo esquemas habituais.
A sátira proposta está, portanto, dirigida ao excesso de negatividade em nosso meio. Assim, a corrupção, os “poderosos” e a politicagem nos parâmetros da maleficência servem como motivos de criação. Ao mesmo tempo, a sátira envolve o povo, o ser sofrido, aquele incapaz de dizer alguma coisa contrária, ou aquele incapaz de alterar alguma situação, por menor que seja.
A ironia proposta nas obras critica os costumes sociais mostrando situações inusitadas. Contudo, o teor das obras esboça um pensamento conhecido, visto na realidade pelo espectador. Embora as imagens criadas possam induzir ao riso, a sátira que proponho não tem a intenção de distinguir o “cômico” e o tipo de “piada” visual.
Por outro lado, Charles Baudelaire mencionava que a natureza do cômico também é mutável, oscilando entre o elemento angélico e o elemento diabólico. Sinto que esse antagonismo, de certo modo, está contido em meu trabalho. Enquanto o político representa a “negatividade”, o povo a “ingenuidade”.
Lido com elementos aparentemente inofensivos (como pássaros e pessoas com vestuários diversos) e com a plasticidade construída principalmente pela disposição das figuras. Emprego, na maioria das vezes, o preto e o branco, valorizando as sombras. Alguns desses motivos são formas simples e objetivas.
Tento mostrar a realidade por meios de uma situação onírica, aparentemente fantasiosa e afastada das possibilidades reais, mas que opera no espectador a possibilidade dele captar as imagens e fundi-las com a sua experiência pessoal. A obra é o catalisador que une o real e o irreal, de modo a espelhar o patamar em que a sociedade se encontra. É isso que eu intento mostrar em minha produção como gravador.
O cortejo - linogravura
O comedor de bananas - linogravura
O caçador - linogravura
Cena iluminada - linogravura
Dominantes e dominados - linogravura
A borboleta e os confetes - linogravura
Renascer - linogravura
O espantalho - xilogravura
Leitura noturna - linogravura
Passeio ao léu - serigrafia
Paulo Cheida Sans
Paulo Cheida Sans é artista plástico, professor do Curso de Artes Visuais da PUC-Campinas e doutor em Artes pela Unicamp.
O Paulo Cheida, é daqueles artistas que representa.