Pandemia é Coisa Séria!!! (distopia carnavalesca)
Por Paulo Reda
“Assim é que é! Viva a folia! Viva Momo – Viva a Troça! Não há tristeza que possa suportar tanta alegria. Quem não morreu da Espanhola, quem dela pôde escapar, não dá mais tratos à bola. Toca a rir, toca a brincar...”. Música de carnaval cantada no Democráticos, promovendo um baile no dia 11 de janeiro de 1919.
Deixa a Gira Ensolar - obra do artista plástico Fabiano Carriero
Domingo (..de fevereiro de 202.) - Por volta das 13h as pessoas começaram a chegar. Pelo 13º ano o bloco Nem Sangue Nem Areia ocuparia as ruas da Vila Industrial. Era o primeiro carnaval depois da peste, já adaptado às regras do novo normal. O rígido regulamento foi elaborado pela diretoria de Distanciamento do recém-criado Ministério da Higiene e Assepsia, com o apoio decisivo do Ministério da Empatia.
O poder havia sido tomado pelo grupo autodenominado “Centro Radical”, uma frente que reunia governadores rebeldes, congressistas e integrantes do Supremo Tribunal, com apoio da imprensa, quando o corpo do ditador Javier Messias foi esquartejado e pendurado de cabeça pra baixo em um poste por manifestantes enfurecidos.
Os extremistas de direita e esquerda haviam sido confinados em masmorras (já que negaram o isolamento durante a peste, agora teriam muito tempo pra pensar sobre isso). Passavam os dias a trocar xingamentos e arremessar restos de comida e fezes uns nos outros, em celas separadas por estreitos corredores.
Henrique observava os trens estacionados no pátio ao lado do local do desfile. Durante muitos meses aqueles vagões transportaram para fornos crematórios os corpos das vítimas da epidemia. Ainda era possível sentir um leve cheiro de morte no ar.
A Vila Industrial fora ocupada pelo MP2 (Movimento dos Pretos Muito Putos), que pela primeira vez abria uma exceção para a presença de brancos no lugar. O nome do Nem Sangue Nem Areia ainda tinha muita força!
Os patrocinadores do desfile eram a produtora de álcool gel Besuntex e a fábrica de respiradores Último Sopro. Um dos derradeiros atos da famigerada gestão de Javier Messias tinha sido acabar com o Carnaval, coisa de maconheiro abortista...
Em busca do apoio fundamental do populacho, o Centro Radical, com muita relutância, decidiu liberar a festa popular. Mas com uma série de restrições. Distância mínima de um metro entre um folião e outro. Todos de máscara. Voluntários circulavam entre a massa com frascos de álcool gel.
Paquera nem pensar!!! O sexo e o beijo na boca haviam sido proibidos quando o país ultrapassou a marca de 1 milhão de mortos. Uma startup esperta criou um aplicativo, o CoronaTinder, que prometia uma sequência ininterrupta de crushs contagiantes (nem todos os publicitários morreram na pandemia, waaalll...).
Alguns músicos, entre os que não morreram com a doença ou de fome durante a peste, animavam o público em cima do trio elétrico. O enredo daquele ano, “Quem escapou da Espanhola, não dá mais tratos à bola”, fazia um apanhado das epidemias no Brasil, da febre amarela e gripe espanhola à recém-erradicada do Covid-19.
O samba vencedor, de autoria de Mandeta do Cavaco e Mano Teich da Cuíca, seria transmitido em uma live para todo o planeta. Trazia versos como: “A Febre Amarela e a Espanhola não foram nada/o Corona é uma parada” “De máscara negra o pierrô e a colombina/desse jeito nosso carnaval termina”. “Nem Baco, Momo ou Jesus/nos livraram dessa cruz”, “A peste não dá bandeira, e quem tá vivo sai no Nem Sangue Nem Areia”.
Com a bateria já devidamente posicionada, o puxador do samba e os músicos a postos, Henrique buscou forças para mais uma vez entoar o grito de guerra da agremiação. Agora, porém, com uma alteração significativa, já que a palavra alegria havia sido abolida por tempo indeterminado pelas autoridades de plantão. “Alô comunidade da Vila Industrial!!!! Pandemia é coisa séria!!!”. Helder Bittencourt, de onde estiver, rogai por nós.
Paulo Reda é jornalista, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue Nem Areia.
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