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Palavrório

Atualizado: 21 de jun. de 2022

Grama

Por Paulo Reda


Kate Bush / Imagem reprodução da internet


“Meus amigos, minha rua/as garotas da minha rua/não os

sinto, não os tenho...” – Ira – Envelheço na Cidade


Sábado (20 de junho) - Com um copo de uísque nas mãos,

contemplava o extenso gramado do Círculo Militar no início de

mais um crepúsculo de junho. O sol ainda aquecia, mas já era

possível perceber que o frio chegaria em breve. Lá pelos lados da

fazenda do Exército se vislumbrava, sobre as árvores, a

perspectiva da noite.

Lembrou daquela frase de efeito de Italo Calvino em

Palomar: “ninguém olha para a lua de tarde, e é este o momento

em que mais precisaria da nossa atenção, já que a sua existência

ainda é incerta”. Em tempos idos essa frase fizera um sucesso

danado com a mulherada. PQP, por que ninguém escreve mais

como Calvino!? Hoje o mercado editorial é dominado por rapazes

e moças saídos das universidades, adeptos de uma prosa

enviesada, repleta de narrativas contrahegemônicas, lugares de

fala e ressignificações. Bullshit!!!

Há 15 anos comemorava seu aniversário naquele lugar. As festas, de modo geral, eram celebrações dionisíacas, movidas a comida, roquenrou, bebida e drogas. Podia agora mesmo ouvir as suas costas as gargalhadas e a falação desenfreada.

Nos primórdios a música saia de um enorme toca-cds, que

certa vez foi quase destruído ao ser levado para o carro por um

dos convidados bêbados. Agora vinha de uma pequena caixa JBL

conectada ao Spotify. Tocava Billy Joel, MyLife: “Got a call from


an old friend we used to be real close/Said he couldn't go on the

American way...”.

O tempo passou, éramos agora quase todos rotundos

cinquentões - alguns sessentões -, a turma original sofrera várias

defecções, por causas variadas, morte, doença, brigas, casamento,

cansaço, bundamolice... Mas ainda havia um ritual a ser

cumprido!

Virou-se e disse ao camarada que comandava a playlist que

estava na hora de colocar a música. Aquela!!! O anúncio foi

recebido com alarde pelos marmanjos, todos àquela altura já mais

pra lá do que pra cá. Hoje esse era o único momento da festa que

realmente os empolgava: a hora de grama. Ninguém lembrava

com precisão como o ritual da grama havia surgido. Só que certa

vez, em um dos primeiros churrascos feitos por ali, alguém teve a

idéia e a coisa colou.

Logo haviam vários corpos estirados no gramado que

rodeava o quiosque, já um pouco úmido pelo sereno. O sol

começava a descer. A visão do céu e dos galhos e folhas das

árvores daquela perspectiva e com aquela luz parecia dar sentido

à vida.

Aos poucos se ouviu a introdução instrumental de

“Wuthering Heights” e a voz de nossa musa Kate Bush. “Out On

the wiley, windy moors/We'd roll and fall in green/You had a

temper, like my jealousy/Too hot, too greedy...”.

Todos começaram a cantar juntos a plenos pulmões. Fechou

os olhos por uns instantes e quando os reabriu se deparou com

uma cena do passado. Uma garota loira de vestido rodopiava ao

som da música entre os corpos deitados, rindo, rindo... Olhou para

os lados e viu um gramado infinito, muito maior do que o Círculo

Militar, muito maior do que o mundo, onde estavam amigos e

mulheres de todos os períodos de sua vida. Apareciam as primeiras estrelas...


Paulo Reda é jornalista há 31 anos, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue nem Areia. Alegria é Coisa Séria!!!

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