Grama
Por Paulo Reda
Kate Bush / Imagem reprodução da internet
“Meus amigos, minha rua/as garotas da minha rua/não os
sinto, não os tenho...” – Ira – Envelheço na Cidade
Sábado (20 de junho) - Com um copo de uísque nas mãos,
contemplava o extenso gramado do Círculo Militar no início de
mais um crepúsculo de junho. O sol ainda aquecia, mas já era
possível perceber que o frio chegaria em breve. Lá pelos lados da
fazenda do Exército se vislumbrava, sobre as árvores, a
perspectiva da noite.
Lembrou daquela frase de efeito de Italo Calvino em
Palomar: “ninguém olha para a lua de tarde, e é este o momento
em que mais precisaria da nossa atenção, já que a sua existência
ainda é incerta”. Em tempos idos essa frase fizera um sucesso
danado com a mulherada. PQP, por que ninguém escreve mais
como Calvino!? Hoje o mercado editorial é dominado por rapazes
e moças saídos das universidades, adeptos de uma prosa
enviesada, repleta de narrativas contrahegemônicas, lugares de
fala e ressignificações. Bullshit!!!
Há 15 anos comemorava seu aniversário naquele lugar. As festas, de modo geral, eram celebrações dionisíacas, movidas a comida, roquenrou, bebida e drogas. Podia agora mesmo ouvir as suas costas as gargalhadas e a falação desenfreada.
Nos primórdios a música saia de um enorme toca-cds, que
certa vez foi quase destruído ao ser levado para o carro por um
dos convidados bêbados. Agora vinha de uma pequena caixa JBL
conectada ao Spotify. Tocava Billy Joel, MyLife: “Got a call from
an old friend we used to be real close/Said he couldn't go on the
American way...”.
O tempo passou, éramos agora quase todos rotundos
cinquentões - alguns sessentões -, a turma original sofrera várias
defecções, por causas variadas, morte, doença, brigas, casamento,
cansaço, bundamolice... Mas ainda havia um ritual a ser
cumprido!
Virou-se e disse ao camarada que comandava a playlist que
estava na hora de colocar a música. Aquela!!! O anúncio foi
recebido com alarde pelos marmanjos, todos àquela altura já mais
pra lá do que pra cá. Hoje esse era o único momento da festa que
realmente os empolgava: a hora de grama. Ninguém lembrava
com precisão como o ritual da grama havia surgido. Só que certa
vez, em um dos primeiros churrascos feitos por ali, alguém teve a
idéia e a coisa colou.
Logo haviam vários corpos estirados no gramado que
rodeava o quiosque, já um pouco úmido pelo sereno. O sol
começava a descer. A visão do céu e dos galhos e folhas das
árvores daquela perspectiva e com aquela luz parecia dar sentido
à vida.
Aos poucos se ouviu a introdução instrumental de
“Wuthering Heights” e a voz de nossa musa Kate Bush. “Out On
the wiley, windy moors/We'd roll and fall in green/You had a
temper, like my jealousy/Too hot, too greedy...”.
Todos começaram a cantar juntos a plenos pulmões. Fechou
os olhos por uns instantes e quando os reabriu se deparou com
uma cena do passado. Uma garota loira de vestido rodopiava ao
som da música entre os corpos deitados, rindo, rindo... Olhou para
os lados e viu um gramado infinito, muito maior do que o Círculo
Militar, muito maior do que o mundo, onde estavam amigos e
mulheres de todos os períodos de sua vida. Apareciam as primeiras estrelas...
Paulo Reda é jornalista há 31 anos, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue nem Areia. Alegria é Coisa Séria!!!
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