Simpatia é quase amor
Por Paulo Reda
Segunda-feira (18 de maio) – Dia de zanzar pelo supermercado. Depois de quase dois meses de isolamento sem que a peste dê sinal de ir embora, a mudança nos hábitos vira rotina. Assim, os corredores do Pão de Açucar fazem as vezes dos bosques gregos para peripatéticos perplexos.
Henrique fora até lá para comprar quatro latinhas de cerveja, alguns frios e sabão em pó, mas aproveitou aquele raro momento desconfinado para arejar as idéias.
Vasculhava detalhadamente cada gôndola, demorava-se nas ofertas, puxava conversa com a moça da padaria...Todos de máscara, como exigia o protocolo.
Além do tédio, da morte, da saudade das ruas, um tema sempre lhe vinha a mente nos últimos dias, às vezes de modo avassalador: o sexo. O sexo e o amor. Será que ainda existiria amor quando todos estivessem livres?
Era difícil jurar amor eterno estando com a cabeça a prêmio pois a vida podia terminar antes do amor.
Lembrou-se de uns versos do Alex Polari, escritos na época da ditadura militar (exaltada pelo nosso presidente de plantão, waaalll): “Era difícil jurar amor eterno estando com a cabeça a prêmio pois a vida podia terminar antes do amor”. Deixemos o amor de lado agora e detenhamo-nos nos apelos do baixo ventre.
Dia desses assistia a um daqueles debates enfadonhos da CPFL Cultural (cabeça vazia é oficina do diabo) e o filósofo francês Luc Ferry mencionou um comentário muito bom de Montaigne sobre o casamento: “Casar por amor é como cagar em um chapéu e depois colocá-lo na cabeça”. Isso sim é sabedoria!!! No século 16, tempo de Montaigne, o casamento era um negócio. Amor se dava aos amantes.
Henrique olhava cobiçoso as mulheres que iam de lá para cá com seus carrinhos. Desde jovem sempre fora um tímido. Uma cambaxirra, como definiria Nelson Rodrigues. Até o final da adolescência ficava ruborizado ao falar com uma pequena. Passou um verão perdidamente apaixonado por uma menina, deu-lhe o nome fictício de Joice (como a cantora), a quem via quase todos os dias na praia no verão de 1980 e tal, sem jamais dirigir-lhe a palavra. Teve sua fase de zona, gonorréias, claro.
Depois dos 17, 18 anos desencabulou um pouco, mais tarde até se tornou quase um cara de pau, mas nunca chegou ao grau de cafajestice que almejava. Ser um canalha límpido e translúcido, como o Palhares, de Nelson Rodrigues, que não perdoava nem as cunhadas, ou o Esmeraldo “Simpatia é Quase Amor”, do Aldir Blanc. Isso sim seria porreta!!! Queria ser assim, como...Ronaldo Bôscoli!!! Mas nunca chegou nem perto disso.
Seu ideal de beleza sempre foi uma loira com boca e bunda de mulata.
Quando chegou ao balcão das comidas, que agora tinha um nome fresco qualquer, tipo “delicatessen”, viu-se lado a lado com uma loira de fechar o comércio. Quase da sua altura, cabelos soltos até o meio das costas, a bunda não era lá essas coisas, but... Dois relâmpagos verdes e a boca... essa não dava pra ver por causa da famigerada máscara. Pôs-se a fantasiar com um boca carnuda, estilo negona. Seu ideal de beleza sempre foi uma loira com boca e bunda de mulata.
E agora? Lançar uma cascata qualquer sobre a peste e o isolamento era algo muito além de seus dotes de galanteador frustrado. Ficou ali, sapeando os preços do frango assado, a cara da maionese, o jeitão da farofa, quando ouviu uma voz rouca, abafada pela máscara, lhe perguntar: “e essa quenelle de vegetais, será que é boa?”. Virou e deu de cara com aquela deusa nórdica.
Não fazia idéia do que fosse uma quenelle e vegetais não eram exatamente a base da sua dieta. Não sabendo o que responder, soltou a primeiro bobagem que lhe veio a cabeça. “Na falta de uma rabada com polenta, serve”. PQP, que merda, pensou. De repente ouviu a gargalhada. “Ai, eu também prefiro, mas com esse negócio de dieta, sacumé”.
Ficaram por ali uns 20 minutos de conversa fiada, contrariando as autoridades de saúde e a OMS. Na saída, sem ele mesmo pedir, lhe passou seu telefone e pediu que a chamasse mais tarde no “zap zap”. Quando se separavam, ela disse: “meu nome é Ana Lúcia, e o seu? Henrique, respondeu. E quando já virava as costas não resistiu a um complemento. “Henrique Palhares. Mas pode me chamar também pelo meu apelido, Simpatia é Quase Amor”. Outra gargalhada...
Paulo Reda é jornalista há 31 anos, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue nem Areia. Alegria é Coisa Séria!!!
Ilustração: The Philosopher in Meditation, Rembrandt.
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