A alma encantadora das ruas
Por Paulo Reda
“...Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de dia à noite, meter-se nas rodas da populaça. Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso cada rua é para mim um ser vivo e móvel” – João do Rio – “A Rua”
22 de abril (quarta-feira) – Com a vida social paralisada por conta da peste, passamos a conviver com o fenômeno das lives. Ontem quase ao mesmo tempo podíamos nos deliciar em nossas casas com shows de Sandy & Junior, Raça Negra e Oswaldo Montenegro. O estoque de gafanhotos do Criador definitivamente deve ter se esgotado.
Para minha surpresa, um amigo, que tem um espaço cultural na cidade, convidou-me para preparar um curso de literatura on-line. Ou seja, uma live!!!! Deixou-me a vontade para escolher o tema. Admito que minha disposição para virar uma espécie de youtuber a essa altura da vida é quase nenhuma.
Mas o autor do pedido é um camarada tão gentil que me pus a pensar sobre o assunto. Como hoje tudo gira em torno da peste e do nosso confinamento forçado, o tema veio de uma das restrições mais aflitivas para um flanador compulsivo como eu: a impossibilidade de zanzar a esmo pelas ruas. Viagens ao redor do meu quarto podem ficar pra outro momento!
A relação de alguns escritores com as ruas. As ruas e as cidades, que é onde elas surgem e se tornam o eixo de convivência das multidões urbanas. Ruas de cidades imaginárias, como a Santa Maria, de Onetti, transfiguradas, como as das Cidades Invisíveis, de Calvino, ou bem reais, como as de Rubem Fonseca e João Antônio. Vou me concentrar nesses últimos; em tempos de peste, a saudade que sentimos não é das ruas imaginárias, que podemos recriar em nossos sofás, mas daquelas que carregam no dia-a-dia nossas vidas ordinárias.
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Quem da minha geração não tem cravada na memória a sua Rua do Jogo da Bola?!
No conto “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”, Rubem Fonseca menciona a Rua do Jogo da Bola. Fica naquela parte abandonada do velho Centro carioca, perto da Pedra do Sal.
Quem da minha geração não tem cravada na memória a sua Rua do Jogo da Bola?! A minha é a rua Afonso Veridiano, no balneário de S..., que forma um L entre a Avenida Epitácio Pessoa e a Rua Oswaldo Cochrane.
Durante a semana, com a molecada dispersa, o jogo geralmente era de dois contra dois na linha e um goleiro. Ou um lelê com dois ou três na linha e um no gol. Jogávamos na quadra que fazia a base do L.
Toda Rua do Jogo da Bola tem um velho chato que furava as bolas que caiam no seu quintal.
Na casa da esquina morava o seu Raul. Toda Rua do Jogo da Bola tem um velho chato que furava as bolas que caiam no seu quintal. O nosso era o seu Raul, que além disso ainda colocava caco de vidro no muro para não pularmos. Cortei o braço naquele muro tentando recuperar uma pelota perdida, tenho as marcas dos pontos até hoje.
Final de semana a história era outra: dia de jogo contra. Aos sábados a rua virava festa e campo de batalha. Pelejas inesquecíveis contra os times da Vergueiro Steidel (nosso maior rival), Ministro João Mendes, Álvaro Alvim e da própria Oswaldo Cochrane. A partida era assistida por nossos pais, pelos vizinhos e por curiosos que passavam ali a caminho da praia ou das compras.
Nós, pés descalços no asfalto quente, matávamos e morríamos pelo gol. Depois da partida, exaustos, seguíamos em caravana para o bar da esquina, onde comemorávamos a vitória ou lamentávamos a derrota com tubaínas geladas. Depois, se a preguiça não batesse ou as mães não chamassem para o almoço, íamos à papelaria Pica Pau, que vendia distintivos decalcáveis para times de botão.
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No conto “Abraçado ao Meu Rancor”, João Antônio pergunta “Por onde andará Germano Mathias? Magro, irrequieto, sarará, sua ginga da Praça da Sé, jogo de cintura da crioulada da Rua Direita? E o que foi que fez, maluco, azoado, de seu samba levado na lata de graxa?”
Para João Antônio, só se chega a esse conhecimento real das ruas caminhando a esmo.
Germano Mathias é nosso Rosebud, aquela imagem de autenticidade das ruas que a publicidade e os guias turísticos buscam a todo custo ocultar. Para João Antônio, só se chega a esse conhecimento real das ruas caminhando a esmo.
“É andar. E andar. Osasco, Lapa, Vila Ipojuca, Água Branca, Perdizes, Barra Funda, Centro, Pinheiros, Lapa, na volta. Roteiro é este, com alguma variação para as beiradas das estações de ferro, dos cantos da Luz, dos escondidos de Santa Ifigênia. Também um giro lá por aquele U, antigamente famoso, que se fazia entre as Ruas Itaboca e Aimorés, na fervura da zona do Bom Retiro”.
“Não há nada a fazer no balneário de S, só nascer, crescer e morrer”. E andar.
E isso me leva de novo ao Balneário de S..., onde meu Rosebud continua escondido em algum buraco na areia da praia. “Não há nada a fazer no balneário de S, só nascer, crescer e morrer”. E andar.
Sair da rua Afonso Veridiano, se for pela Oswaldo Cochrane passamos pela bicicletaria do Chico, Bar Halley, casa do Haroldo, casa do Buldogue, Panificadora Miramar, o bar da esquina, que hoje foi comprado pelo Toninho e ficou famoso. Pensão da Dona Cota, onde vi certa vez o Milton Banana, Cantina Drina, Papelaria Lanzelota... E a praia.
Naquela época todos os caminhos levavam à praia.
Se formos pela própria Afonso Veridiano passamos em frente à vila, depois o prédio do Douglas, a Vergueiro Steidel, onde moravam nossos maiores adversários no futebol e alguma meninas bonitas, o Conservatório Beethoven, o bar de esquina que existe até hoje e do qual nunca guardei o nome, a Casa da Vovó Anita, o corredor dos prédios com nome de santo que levava direto da Epitácio Pessoa até a praia... E a praia. Naquela época todos os caminhos levavam à praia.
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Anexo (poesia encontra ao acaso no fundo de uma gaveta em certo apartamento na Rua Afonso Veridiano)
Molecada apostando corrida na chuva,
sob os pés a areia, quase barro,
cheiro das folhas molhadas dos chapéus de sol:
compartilho com o mar o abraço da vitória.
Anos depois contemplo
de longe a mesma praia,
protegido por uma muralha de copos,
o som das ondas encoberto
pelo das vozes bêbadas.
Debates intermináveis -
jamais hesitar, jamais gaguejar,
o fogo destrói tudo que não faço.
Na mesa ao lado mulheres dançam samba;
a morena tira o chapéu e liberta cabelos em desalinho:
a beleza do desmazelo!
Tresnoitado...
O sol a pesar no pescoço,
encontra a pedra na qual
está escrito seu epitáfio:
Do sal viestes,
ao sal voltarás.
Paulo Reda é jornalista e cronista.
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