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Palavrório

Qual é a sua dor?

Por Paulo Reda

Jamais havia matado. Essa ideia nunca tinha lhe passado pela cabeça. Gostaria de conversar com alguém sobre o assunto, mas não era possível. A principal questão agora, quando decidiu que a vida só teria sentido se matasse uma pessoa, era se conseguiria fazer isso. Duas outras coisas precisavam ser definidas. De que forma cometeria o assassinato e quem seria a vítima?


Não tinha nenhuma familiaridade com armas. Desastrado como era, se empunhasse um revólver ou pistola a chance de acertar um tiro no próprio pé seria considerável. Venenos pareciam coisa de romance policial do século 19.


Lembrou de A Grande Arte, do Rubem Fonseca, e se decidiu por uma faca. Percor. Procurou um amigo que entendia daqueles troços pra se aconselhar sobre o modelo mais adequado. Acabou escolhendo duas: uma Zakharov Tarântula 5, com lâmina de 12,5 de comprimento, e uma faca de pescoço Bravo, mais discreta, com lâmina de 7 cm.


Ernesto perdera o emprego 15 dias antes da decretação da pandemia. Durante 35 anos trabalhara como jornalista e em assessoria política. Tudo aquilo parecia acabado, coisas de um passado cada vez mais impreciso.


Já havia decidido também para onde ir depois do crime. Ushuaia, a Terra do Fim do Mundo, no extremo Sul da América do Sul. Viver totalmente só, na companhia de focas e pinguins. Pegaria um voo para Buenos Aires e de lá mais 3 horas e meia de avião até Ushuaia. Nunca mais sairia de lá.


Restava a dúvida sobre quem matar. Um antigo patrão desonesto, colegas de trabalho medíocres, ex-mulheres inescrupulosas? Não tinha raiva suficiente de ninguém em especial a ponto de matar. O ideal seria o assassinato de um desconhecido, totalmente gratuito, sem nenhum sentimento envolvido.


De alguém que corporificasse o mundo repulsivo que estaria sendo simbolicamente esfaqueado naquele ato. Quem? Um youtuber juvenil? Uma digital influencer ignorante? Um neo-integralista? Uma cicloativista vegana? Não...ainda não...Um coach!!! Sim, um coach!!! Tudo parecia claro agora.


******


“Qual é a sua dor”? A pergunta, feita à queima-roupa, intrigou Ernesto. Não sabia o que responder. Olhou com atenção para o sujeito à sua frente. Entre 35 e 40 anos, barba aparada por algum barbeiro da moda, cabelo comprido preso por uma tiara. Roupas provavelmente compradas no shopping.


O homem, que vamos identificar aqui como “Coach”, já se impacientava com o silêncio. “Minha dor é gente como você existir”, pensou Ernesto. Mas não disse nada. Elaborou algo mais ameno. “Ontem à noite torci o joelho ao caminhar por uma calçada irregular. Doeu pacas”.


O “Coach” não fez questão de esconder a decepção com a resposta. Indicou um livro sobre algo chamado Comunicação Não-Violenta, cobrou o preenchimento de um questionário que seria enviado por e-mail e lhe pediu que abrisse uma conta no Linkedin.


Ao chegar em casa, ainda pensava na pergunta feita pelo “Coach”. “Qual é a minha dor”, ora bolas!!! Minha dor é aquela, indistinta, que sinto todos os dias ao acordar em um mundo que não foi feito pra mim. Minha dor é estar tecnicamente morto.

Antes de ir pra casa foi a uma livraria e comprou o tal livro sobre Comunicação Não-Violenta. Quase R$ 90, pqp!!! Abandonou a leitura depois de uma 20 páginas. Era um amontoado de lugares-comuns compilados por um psicólogo americano com cara de picareta. A vida toda fora treinado em comunicação violenta, jornalismo sangue no olho, espalhar cascas de banana para pilhar em contradição autoridades envolvidas em falcatruas.


Criou a conta no Linkedin. Aquilo era ainda mais estúpido que as outras redes sociais. Entrou no facebook do “Coach”. Fotos de corridas de rua, ao lado de marmanjos sorridentes mordendo medalhas. Outras com uma mulher, mais ou menos da mesma idade e tão estereotipada quanto ele, acompanhadas de legendas como “Gratidão” ou “Deus no Comando”. Na foto da capa, uma frase em destaque: “Torne seus sonhos realidade”.


Ernesto fazia parte de uma geração – talvez a última – para a qual um camarada que não tivesse lido Proust, Thomas Mann e James Joyce não podia ser considerado civilizado. Dizia a todos que o nome Ernesto era uma homenagem ao escritor Ernest Hemingway, mas mentia. Era apenas como se chamava o irmão mais velho de seu pai, que morrera pouco antes do seu nascimento.


Hoje vivia da modesta herança deixada por uma tia solteirona. Certa vez, essa tia lhe disse que rezava todas as noites para que ele não se tornasse um alcoólatra. “Essa é a prova incontestável de que Deus não existe”, rebateu Ernesto. Respostas inadequadas, como de costume...


Dormia um sono inquieto quando uma imagem surgiu com inesperada nitidez. Caminhava resoluto em direção ao “Coach” com uma faca na mão. Sem dizer nada, cravou a lâmina em sua espádua. O rosto, antes impassível, foi tomado de horror. Tentou dizer algo, mas sua boca se encheu de sangue. Acordou banhado em suor. Chegara a hora de matar.


Voltou poucos dias depois ao escritório do “Coach”. Havia preenchido o questionário com respostas padrão e conseguiria, se necessário, citar algumas das bobagens que lera no livro sobre Comunicação Não-Violenta. Mas o sonho não lhe saia da cabeça. Levava consigo as duas facas: a Zakhavov em uma bainha na cintura escondida pela camisa e a Bravo em um estojo pendurado no pescoço. Comprara uma passagem aérea com destino a Buenos Aires para a manhã seguinte, de onde seguiria para Ushuaia.


No caminho pensava nas péssimas experiências que tivera em processos seletivos de emprego e dinâmicas de grupo. Certa vez lhe pediram pra desenhar algo que representasse o conceito de ascensão. Rabiscou mal e porcamente um caralho em riste.


Outra vez se viu envolvido numa encenação sobre três ilhas que eram habitadas por pessoas “normais”, mudas ou cegas. Claro que foi colocado na ilha dos cegos. Passou muito tempo com uma incômoda venda nos olhos, que teimava toda hora em baixar, sendo advertido pelo pilantra que aplicava o teste. Sentou na mesma mesa do presidente da empresa, que lhe perguntou o que havia achado da experiência. “O pior cego é o que quer ver”, respondeu Ernesto. Foi demitido poucos meses depois.


Já próximo ao final da sessão, o “Coach” escreveu uma palavra em letras maiúsculas na lousa branca que havia no canto da sala: “Meta”. Ernesto imaginou que teria de falar algo sobre aquilo. De repente, lhe vieram à cabeça as imagens do sonho e a resposta ao desafio lhe pareceu natural. “Torne seus sonhos realidade”. Pela primeira vez viu um sorriso surgir no rosto do “Coach”. “Ótimo”, disse ele. Estamos evoluindo.


“Já ouviu falar em Hölderlin”, perguntou Ernesto. O “Coach” negou com a cabeça. “Tem uma frase dele que gosto muito. “O homem é um Deus quando sonha e apenas um mendigo quando pensa”. “Excelente”, disse o “Coach”. Posso usá-la no meu facebook”? Como se escreve mesmo o nome do tal poeta? Hölderlin. H-o-l-d-e-r-l-i-n. Com trema no o.


O “Coach” lhe deu as costas por um instante. Ernesto percebeu que chegara a hora. Decidiu usar a faca Bravo. Levantou e quando o “Coach”, sem desconfiar de nada, se virou e começou a falar, foi perfurado três vezes com rapidez pela pequena lâmina. Antes do corpo tombar, Ernesto o segurou pela parte de trás da cabeça e ainda teve tempo de lhe fazer a derradeira pergunta: "Qual é a sua dor”?


Paulo Reda é jornalista, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue Nem Areia.






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