No se puede vivir sin amar
Por Paulo Reda
“O que tu amas permanece, o resto é lixo. O que tu amas não te será roubado. O que tu amas é tua verdadeira herança”. (Ezra Pound – Canto 81)
Albert Finney interpreta o cônsul e alcoólatra Geoffrey Firmin no filme À Sombra do Vulcão
Quarta-feira (2 de novembro de 2022) – Há exatamente um ano Dalmo chegou ao balneário de C... Uma inusitada herança recebida de sua madrinha, a quem quase não via, lhe permitiu comprar a casa modesta, porém com uma esplendorosa vista para o mar.
Fora um dos últimos atingidos pela peste que entre 2020 e 2021 devastou o planeta. Começou a apresentar os sintomas no momento em que a doença havia sido praticamente erradicada, depois de matar mais de um milhão de pessoas só no Brasil. Passou 20 dias internado, mas conseguiu se recuperar. O mesmo não aconteceu com Irene, que morreu poucos dias antes de sua saída do hospital.
Era inevitável que hoje, Dia de Finados, essas lembranças lhe viessem à cabeça. Como descrever a dor indescritível!?!? O Dia de Finados era o Firmin´s Day, quando ele e alguns antigos companheiros comemoravam a saga etílica do cônsul Geoffrey Firmin em À Sombra do Vulcão. Os companheiros e as bebedeiras coletivas faziam parte do passado.
É curioso pensar que durante muito tempo sua rotina atual lhe parecesse um desejável ideal de vida; passar a velhice em alguma casa na praia, cercado pelos clássicos gregos e romanos, Montaigne, Vieira, O Paraíso Perdido e libretos de óperas.
Enviara no dia anterior aos editores os originais da biografia de Cosme Fernandes Pessoa, o Bacharel, um degredado que chegara ao balneário de C... por volta de 1502, muito antes do famigerado colonialista Martin Afonso de Sousa, a quem a historiografia oficial atribuía a “descoberta” do Balneário. O Bacharel era seu herói. Casou com seis índias e mandou a coroa portuguesa às favas.
Viera duas vezes com Irene a C... Puta que pariu, ela adorava esse lugar enfadonho!!! Pensou em enviar um Happy Firmin´s Day aos velhos amigos, mas tinha desativado suas redes sociais. Ao olhar pela janela viu de relance o mar e o céu e decidiu esticar as canelas depois de dias recluso.
Caminhou lentamente até a Avenida Beira-Mar. De lá, seguiu ao Mercado de Peixes, onde tomou a primeira cerveja do dia e passou algum tempo de prosa com os pescadores. As únicas pessoas com quem conversava desde que chegara a C... eram os pescadores e os donos e funcionários dos poucos estabelecimentos que frequentava, que o chamavam, zombeteiramente, de Dalmo Bacharel, tamanha sua obsessão pelo personagem. Aproveitou sua ida ao Mercado para buscar uma faca de pesca que havia encomendado.
Comprou o jornal e parou num boteco da Avenida Beira-Mar, que tinha mesas do lado de fora. Pediu uma cerveja, uma cachaça Salinas e uma dúzia de ostras. Por alguns instantes parecia que sua vida havia voltado ao normal. O jornal trazia notícias sobre a criação de milícias de extrema-direita, que pipocavam no país depois da execução sumária de Javier Messias pelos governantes que tomaram o poder com o fim da peste.
Naquele exato momento, beatos saiam contritos em procissão da Igreja de São João Batista, construída há 350 anos, a maior parte com roupas pretas. Entre eles estava um grupo da autointitulada Brigada Martim Afonso, um maldisfarçado bando de fascistóides que apoiara Javier Messias até seus últimos dias.
Eram facilmente reconhecíveis por terem todos, quase sem exceção, cara de poucos amigos e pela camiseta com o lema do grupo: “Cellula Mater”. “Viva o Bacharel”!!!, gritou Dalmo, para horror dos papa-hóstias e dos brigadistas, que detestavam qualquer menção ao nome do degredado.
Estava em sua segunda rodada de cerveja/cachaça/ostras quando reparou em uma morena parada ali perto. Por volta de 35 anos, cabelos compridos anelados, quadril largo, peitos grandes... E uma semelhança assustadora com Irene! Já a observava há algum tempo quando ela andou em sua direção.
A moça entrou na birosca e ficou de papo com alguém do outro lado do balcão. Conseguiu ouvir o nome dela: Mara. Algum tempo depois, um homem que já estava lá dentro se levantou e começou a falar de forma ríspida com a morena. Usava a camiseta da Brigada Martim Afonso.
Dalmo não se moveu, mas passou a olhar fixamente para o rapaz. Todos diziam que Dalmo tinha cara de policial, sempre de óculos escuros modelo aviador e cabelo curto. Talvez isso tenha intimidado o sujeito, que saiu pisando duro.
Voltou a pensar em Irene. Desde sua morte, todos os dias e noites lamentava pacientemente o que ela sofrera. Aos 56 anos sentia-se velhíssimo. Vieram-lhe à cabeça uns versos de Yeats... “Aquela não é terra para velhos. Jovens aos beijos, aves a cantar...”
A essa altura já tinha tomado três cervejas, três cachaças e comido duas dúzias de ostras. Se fosse pra casa tiraria um cochilo na rede e depois leria o James Joyce de Richard Ellmann e ouviria o disco duplo de Friedrich Gulda com os 24 prelúdios de Debussy, acompanhado por um uísque e um charuto. Rotina tão rigorosamente organizada é quase morte.
Mara se despediu da pessoa com quem conversava no balcão e seguiu até o embarcadouro que ficava do outro lado da avenida. Num impulso resolveu segui-la. Em alguns minutos, subiam no barco rústico que iria para o Perequê, pequena vila de caiçaras que ficava a 20 minutos dali. Estivera lá com Irene, mas desde que viera pra cá nunca mais voltou. Lembrou-se que na época procurou o sentido da palavra Perequê e descobriu: briga, alvoroço...
Sentou-se na extremidade esquerda da última fileira de quatro bancos do barco, de onde podia observar a mulher, que estava no banco à direita da segunda fileira. Ela ajeitou os cabelos em coque; Dalmo pôde ver com nitidez sua nuca suada. Era uma moça simples, pescadora ou artesã.
Trazia uma garrafinha de uísque no bolso da bermuda. Deu um longo gole e recostou a cabeça no encosto do banco. Cochilo... usquebaugh usquebaugh. Quando estiveram por aqui anos atrás Mick não queria de jeito nenhum entrar na água. “Têm sereias nesse mar. Elas arrastam os homens aos rochedos para morrer”.
Desembarcaram. O Perequê era uma faixa de areia razoavelmente estreita, rodeada por restingas e manguezais. Naquele horário, os turistas que frequentavam os quiosques dos pescadores começavam a ir embora, junto com o sol. Urubus flutuavam lá em cima, no céu muito azul de novembro.
Andou cerca de 15 minutos atrás da moça, quando de repente ela resolveu entrar no mar. Agachou-se e, com as mãos em concha, molhou várias vezes os cabelos, o rosto e o peito. Chutou a água como criança e, quando Dalmo chegou mais perto, abriu um sorriso, mandou-lhe um beijo e foi embora.
Dalmo tentou se aproximar, mas desnorteado pelo álcool, pelo sol e pelo gesto de Mara perdeu por alguns segundos os sentidos. Acordou estatelado na areia. Olhou novamente e nem sinal dela. Voltou para o local de embarque e descobriu que o próximo barco só sairia em duas horas.
Sentou na areia encostado a uma canoa velha. Esvaziou a garrafinha de uísque. Fechou os olhos com a sensação agradável de que a vida voltava a lhe correr pelas veias. Disse em voz alta outro trecho daquele poema de Yeats... “um homem velho é apenas uma ninharia, trapos numa bengala à espera do final, a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria acima dos farrapos da existência...”
O sol já se punha e ele avistou um bar/quiosque próximo dali. Sentou no balcão e pediu uma cerveja e uma cataia. O rapaz do caixa perguntou seu nome para anotar na comanda. “Cosme. Cosme Fernandes Pessoa.
“Essa bebida (cataia) é levemente alucinógena”, dizia o Zé do Cleto, dono doidão de um boteco das antigas. Já estava na segunda cataia e segunda cerveja quando reconheceu no outro canto do balcão o homem que havia ofendido Mara horas antes. Estava na companhia de outros três sujeitos mal-encarados. Olhavam todos fixamente para ele. Todos com a malfadada camiseta.
Algum tempo depois, Mara chegou ao quiosque com duas amigas. Trocou olhares com Dalmo, mas logo depois foi para uma mesa no fundo do bar. Um último turista deixou o quiosque e largou seu celular sobre o balcão. Antes que pudesse chamá-lo ou avisar o funcionário do bar, um dos sujeitos mal-encarados o pegou e guardou no bolso.
Havia no canto uma jukebox caquética. Entre as músicas, uma mixórdia de pagodes e sertanejos, encontrou A Whiter Shade of Pale. “We skipped a light fandango/turned cartwheels cross the floor/i was felling kind of seasick/the crowd called out for more”.
Lhe veio à memória a vez em que vira uma travesti sem um dos braços dançar ao som dessa música. “Ela não tinha o braço e mesmo assim o mexia durante a música”, contou ao rapaz do balcão. Levantou e já meio bêbado começou a imitar seus movimentos, para diversão das mulheres.
Foi quando percebeu que havia retratos de Javier Messias e de Martim Afonso de Sousa espalhados pelas paredes do lugar. Sentiu um jorro de vômito lhe chegar quente e áspero à garganta. Correu para o banheiro.
Ainda atordoado, voltou para o balcão do bar. Sabia que para honrar a memória do Bacharel precisava confrontá-los. Afastando garrafas e copos com os pés, subiu a uma mesa. Pretendia fazer um discurso enfurecido contra Javier Messias e Martim Afonso de Sousa. Mas o que lhe veio à cabeça foi uma frase do cônsul Geoffrey Firmin. “No se puede vivir sin amar...no se puede vivir sin amar!!!!”
Se encaminhou cambaleante para a porta do bar em direção ao embarcadouro quando ouviu o som do tiro. Caiu. O homem que havia ofendido Mara estava agora debruçado sobre ele. Podia sentir seu bafo azedo. Lembrou da faca de pesca que trazia no bolso. Em um último esforço, a cravou com toda a força na barriga do sujeito e girou a lâmina. Ouviu o barulho do corpo caindo ao seu lado. “Assim, eu entrego o arpão!”.
Chovia de leve. Havia sido jogado na restinga, ao lado de um cachorro morto. Um rosto então brilhou no escuro e Dalmo percebeu que Mara se curvava sobre ele e tentava ampará-lo. Ainda teve tempo de dizer: “Ah, Irene, meu amor, me perdoe!”
História escrita em homenagem a Geoffrey Firmin, o Cônsul, e Cosme Fernandes Pessoa, o Bacharel.
Paulo Reda é jornalista, com passagens por diversos veículos de comunicação. Crítico literário, musical, cronista e poeta bissexto. Diretor do bloco carnavalesco Nem Sangue Nem Areia.
Comentarios