A indesejada dos homens
Por Paulo Reda
Domingo, 22 de março de 2020 – A irmã siamesa da peste é a morte. A indesejada dos homens. É uma sombra que nesse momento paira sobre todos nós, não da forma difusa do dia-a-dia, mas como ameaça real. Como estatística renovada continuamente. Aos domingos se faz ainda mais presente, graças às nauseabundas recordações da infância católica.
A morte é um dos temas mais frequentes nas obras de filósofos e poetas. No ensaio “Que filosofar é aprender a morrer”, o mestre do ceticismo Michel de Montaigne argumenta que “A morte é o fim de nossa caminhada, é o objeto necessário de nossa mira; se nos apavora, como é possível dar um passo à frente sem ser tomado pela ansiedade?”. Para Montaigne, o remédio do vulgo é não pensar nela. “Mas de que estupidez brutal pode vir cegueira tão grosseira”?
“Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte”.
A mesma atitude, contudo, não caberia ao homem ilustrado. “Se a morte fosse um inimigo que se pode evitar, eu aconselharia empregar as armas da covardia; mas já que não se pode, já que ela vos agarra, tanto ao fugitivo e ao poltrão como ao homem de honra, aprendamos a arrostá-la de pé firme e a combate-la. Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte”.
A morte é presença constante na obra da poeta Sylvia Plath, que cometeu suicídio em 1963, aos 30 anos. No poema “Lady Lazarus”, ela a apresenta com uma certa volúpia, quase vangloriosamente: “Morrer é uma arte, como tudo o mais. Nisso sou excepcional. Faço isso parecer infernal. Faço isso parecer real. Digamos que eu tenha vocação”.
Outros a enxergam até mesmo com humor. Em seu “Dicionário do Diabo”, Ambrose Bierce, no verbete “Morto, elabora um versinho irônico: “Já respirou o que podia; nada ao mundo deve; e a linha de chegada ultrapassou. Recebe o prêmio então: a cobiçada vala neste chão”.
Além da minha filha, que mora em outro país, meu único parente próximo ainda vivo é minha irmã Laura. Bem mais velha que eu, me trata até hoje como garoto. Talvez eu lhe dê motivos. É uma plácida aposentada, que vive em relativo conforto.
Eu, ao contrário, hoje me sinto como uma laranja chupada. Seco e jogado a um canto. Aos pouco me desfiz ou fui abandonado pela família, amigos, admiradores e até mesmo pelos detratores. “Um homem nascido para ser respeitado, talvez admirado, mas jamais amado”. Esse foi meu lema durante muito tempo. Já fui respeitado e admirado, isso acabou... Para me encorajar a encarar o isolamento provocado pela peste, Laura propôs um desafio.
“Realize o seu sonho”, disse. “That was Laura, but she’s only a dream”. Mas ela é que me cobrava um sonho. Não tinha nenhuma ideia do que entregar. Pensei em sonhos longínquos. Escrever um livro. Sabia que não tinha disciplina ou talento pra isso, mas foi o que prometi.
Tinha me desfeito de tudo que acumulara durante a vida. Os discos, colecionados criteriosamente durante 35 anos, foram doados ao bazar de um centro espírita. Os livros aos poucos tinham o mesmo fim. O passado era irrecuperável e o futuro intolerável.
Olhava os poucos livros que restavam espalhados pelo chão do quarto que durante tanto tempo servira como biblioteca e escritório. Peguei um deles a esmo e num estalo descobri o enredo do sonho: “A Morte de Iván Ilitch”, 66 páginas da mais perfeita literatura já produzida.
Alteraria os nomes dos personagens e os cenários e apresentaria a Laura aos poucos a novela do conde Tolstóy como se fosse minha. Poderia ambientá-la no balneário de S... Já haviam feito algo parecido com o Tio Vânia de Tchecov no cinema.
Curiosamente, o que me manteria vivo seria uma das mais brilhantes descrições já feitas da morte.
Paulo Reda é jornalista e cronista.
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