Prá lá de onde morrem os sonhos – Parte I
Por Dona Terê
Eu, Dona Terezinhinha, a bordo de minha dose matutina de rapé, venho-lhes, auês, contar a história lá de donde a terra mastiga os sonhos daquele que não possuem dinheiro e por isso perderam o direito ao sonho de toda noite, afinal futuro e amanhã são privilégios de quem os pode comprar, olê, olá!
Morfeu: o deus dos sonhos, segundo a mitologia grega
Corre cotia na casa da Tia.
Chora cuíca.
Fica.
Fica-se a terra dessa pobre gente no canto de todo canto, no olho do furacão, na impossibilidade. Fica-se o tanto dessa gente sem sonhar, espalhado é pelo globo todo, te-fa-lo. AlÔ! Te provo. Privado dos sonos dos justos, submetidos a injustas e obscenas explorações, o povo insôneo vive de olho fechado, que é pra não ter olhos de ver e ouvido de ouvir sua própria e cotidiana desgraça.
E eu, Terê Franqué de La Migué, durante muito tempo fui uma dessas pessoas a quem o pouco direito à fantasia de uma noite bem dormida era extraviado, ainda no berço, feito um trocado pouco que se puxa e repuxa do bolso de quem não come. É dose.
Galo que grita não tromba com galinha muda.
Acuda, que viver sem sonhar é coisa bruta e machuca.
Lá adelante, depois do reino de Morpheu, uma cuíca rouca atenta contra a moral burguesa: incendeia templos e igrejas, dinamita esquinas, levanta a saia da monarquia e estraçalha seus obscenos Panniers. Malvada, a bendita devora cartões de créditos e vomita cifras. Vadia, no melhor sentido do elogio, passa de mão em mão e entoa no cordão da vida a sua única certeza.
Um alarido incessante vale mais que mil discursos entediantes.
Até a cuíca tem direito ao sonho quando cessa seu canto.
Nóis não! Vendemos os nossos sonhos para garantir as últimas novidades hitéqui da próxima blackfriday.
Mas eis então a descrição da terra onde habitamos, ela fica por ali: Prá Lá de Onde Morrem os Sonhos.
Uma terra que nunca dorme.
O barreado moreno que toma conta do vale da íris estende-se até os verdes gramados da rota do sol perene. Ali nunca anoitece. É ali, perto do arco-íris de cor cinza que fica o QG da milícia da Areia Finda.
Pra encurtar a história, Morpheu se meteu numa papagaiada tremenda por conta de rachadinha de assessores e alguns imóveis comprados a toque de ouro e de caixa na terra dos magnatas. O escândalo foi tremendo e a confusão geral.
Galantunes Belssário, seu braço direito, meteu-lhe um gancho de primeira e botou o dono do saquinho de areia que faz nanar pra dormir o sono eterno no esplêndido berço do cemitério clandestino das guaiacatumbas.
De posse do bem mais precioso de Morpheu, Galantunes definiu que agora pra dormir, e pra se sonhar, era preciso pagar. Formou sua milícia insône e partiu pra todos os cantos, habitando paraísos e pesadelos, mandando o seu recado: quem não pode pagar, que viva acordado!
E assim foi, e foi tanto, que a antiga casa de Morpheu virou QG de Belssário e seus asseclas, e a terra do antigo Rei do sono, um barreato indigesto que mantém a tudo e a todos acordados até que se pague o combinado.
Eu, Dona Tereteretete, estava era de passagem por aquelas bandas quando tudo se sucedeu. E curiosa que sou, resolvi por ali ficar, pra tudo anotar, e acabar por avisar a todo mundo de todos os mundos o que se passava na terra em que agora sonhos eram assassinados no berço.
CONTINUA...
Dona Terê é o pseudônimo de todos nós. Sua paródia crítica ácida e corrosiva levanta o tapete e mostra a sujeira escondida da sociedade.
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