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Atualizado: 21 de jun. de 2022

A questionável justiça de Edemilton Pitombas - Parte III

Por Dona Terê

Nota da autora


As anotações que deram origem ao presente texto foram iniciadas em uma época em que ainda não medíamos o tempo através de números, enfermidades ou rugas. Na realidade, é possível que naquele tempo o tempo ainda nem existisse, e a nossa régua para calcular a cavalgada dos dias era apenas o nascer do sol de toda manhã e seu dissolver na boca negra da noite todo fim de tarde. Por isso é impossível, além de impreciso, traçar uma linha cronológica ou algo do tipo a respeito dos acontecimentos narrados.

Afinal, os episódios referentes à alma do mundo não os medem os anos, e sim a intensidade.

É importante ressaltar também que toda informação que compõe a obra é fruto de pesquisa, vivência em campo ou história grafada a golpes de gilete no couro dessa quer vos escreve, Dona Teretetê. Além disso, esclareço que o intuito da coisa não é recriar o surgimento, a ascensão e a queda de Edemilton Pitombas, e sim denunciar seus crimes, questionar a sua lógica e combater sua moral absolutamente imoral.


Por fim, e não menos importante, deixo claro que ainda sinto no alto do céu da boca o gosto férreo de sangue que deu origem à vontade de contar essa história.


Terezinha.

Parte III: A descoberta do nada


Obulayê de Auripurá, Pequeriquêre, Paracatum, Catumbumbá, Massaguaçu, Orítambu, Katumbiânte, Mussangulá... e por aí vai... Era tanta variedade de planta e paisagem crescida na beira do dia e no meio de tudo de nossa terra, que onde quer que surgisse um ramo ou uma pétala a gente já ia de bate pronto identificado o que era. Quando o que brotava existia, alguém logo já dizia pro que servia. E quando a coisa não existia ou ninguém sabia o que era, a gente logo inventava uma serventia pro que crescia. A lista era grande: raiz pra espanta mal olhado, folha macerada pra curá febre, flor seca pra findá o azar. Não havia fruto do ventre da terra que ali deixava de dar ou peste que algo fizesse pra nossos ramos e trepadeiras. Nada, nada nesse mundo tinha mais força e persistência do que a natureza de HombreLivre, e a prova disso era o verde vasto, infinito, que cruzava tudo que era horizonte do nosso canto e tingia de vida qualquer cinza de morte que por ali caía desavisada.


Edemilton Pitombas, que além de bigodudo era muito do enxerido, viva perguntando pra todos, escutando pelos cantos, anotando às escondidas tudo que surgia no solo santo de nossa aldeia. Vasculhando terra à mão feito roceira de arranhado, tramando nas brechas e nos bosques, tingindo e torcendo seu bigode serpente por entre a vida de nossa gente, o forasteiro acabou se fazendo rotina e por fim todo mundo se acostumou com seu cheiro de enxofre e sua britadeira feita de língua que cavocava miudamente as tramas e tranças do futuro de nossa cidadela, àquele tempo ainda indefesa.


Ali, adonde surgira a primeira prisão de nossa terra, entre o pau e o couro de Pitombas, a terra havia ficado infértil, fedorenta, como se alguém a tivesse amaldiçoado com sangue e jogado sal grosso depois da queimada. Nem mesmo uma erva daninha se proprunha a surgir do meio daquele chão seco onde o forasteiro havia pisado pela primeira vez. Era tão inusitada a coisa, tão absurdo o vazio, que a gente de HombreLivre vivia falando sobre aquilo que não havia ali. Maria Vuvuzela, que descia ladeiras com seu chici chic, dengando e gritando com todo mundo, foi a primeira a perceber que ali onde o pau e o couro estavam, afinal pitombas dali os tirará coberto pelo véu da madrugada, era agora terra do vazio. Maria, menina faladora e assanhada, sem saber definir a ausência, inventou o nada pra traduzir aquela terra seca. E nós nem imaginávamos que era justamente o nada de Edemilton Pitombas a única coisa que passaria a crescer dali pra frente fosse na nossa terra ou no peito de nossa gente.


Dona Terê vive!

Imagem: Minister Of Tangiers, de Georges Jules Victor Clairin.

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