A questionável justiça de Edemilton Pitombas - Parte II
Por Dona Terê
Nota da autora
As anotações que deram origem ao presente texto foram iniciadas em uma época em que ainda não medíamos o tempo através de números, enfermidades ou rugas. Na realidade, é possível que naquele tempo o tempo ainda nem existisse, e a nossa régua para calcular a cavalgada dos dias era apenas o nascer do sol de toda manhã e seu dissolver na boca negra da noite todo fim de tarde. Por isso é impossível, além de impreciso, traçar uma linha cronológica ou algo do tipo a respeito dos acontecimentos narrados.
Afinal, os episódios referentes à alma do mundo não os medem os anos, e sim a intensidade.
É importante ressaltar também que toda informação que compõe a obra é fruto de pesquisa, vivência em campo ou história grafada a golpes de gilete no couro dessa quer vos escreve, Dona Teretetê. Além disso, esclareço que o intuito da coisa não é recriar o surgimento, a ascensão e a queda de Edemilton Pitombas, e sim denunciar seus crimes, questionar a sua lógica e combater sua moral absolutamente imoral.
Por fim, e não menos importante, deixo claro que ainda sinto no alto do céu da boca o gosto férreo de sangue que deu origem à vontade de contar essa história.
Terezinha.
Parte II: A chegada.
Quando lá de longe a figura de Pitombas passou a manchar o horizonte pra donde apontavam os olhos fechados e sem porquê do velho Jacinto, o corcel já não era mais um cavalo. Trotando feito uma máquina de guerra, deslizando feito chumbo líquido pelas encostas do monte arredado, o turvo negrume daquele bicho parecia matar, riscar do mapa, destruir tudo aquilo que ficava pra trás de sua cavalgada desvairada. Naquele instante não podíamos prever que tudo que estava à frente do maldito bicho também teria o mesmo destino daquilo que, sem opção, morria por de trás de seu lombo com a mesma velocidade e violência com a qual o diabo sapateava nosso chão. Do alto do monstro, não como um ginete, mas feito fosse uma Valquiria em plena cavalgada, Edemilton Pitombas parecia uma estátua feia de carne e maldade. As suas vestes estavam intacta apesar da pressa do trote do bicho. Nada naquela figura, tão imponente quanto patética, se movia; com exceção dos fios de seu bigode que pareciam criar vida e, como se fossem insetos rastejantes, escorriam pela nossa terra, velejavam na poeira da tarde, e se enroscavam por todas as partes como raízes em busca de terra fértil. Que azar o nosso.
Tão logo a dupla achegou-se por nossas bandas, e seu Pitombas num só pulo despencou do alto do corcel, e a sola de sua botina aconchegou-se-se em nossa aldeia, um cheiro de podre e de dor se espalhou-se-se pelo dia e pela noite, correndo no lombo do vento e do tempo, tocando cada flor e cada pedaço de gente que nasceu daquele dia em diante em HombreLibre. Depois daquele salto seco nós nunca mais fomos os mesmos, tão pouco poderíamos.
Como todo cretino, Pitombas também distribuía sorrisos e falava difícil, conquistando através da mentira e da manipulação a simpatia de cada cidadão contra os quais ele mesmo, diabo de esporas, em segredo tramava. O cabra foi logo dizendo que vinha não sei donde e estava rumando pra não sei onde, e que havia parado praqueles lados pra uma xícara de café e um lugar arejado onde pudesse esticar as canelas e descansar o bigode cansado de tanto enforcar e agarrar. Sugerimos de bate-pronto o verdejante monte santo, àsdireita depois da roseira, e ao lado das palmeiras que Seu Javali regava com uísque e lágrimas todas as manhãs. O viajante agradeceu, recolheu a fala mansa e o bigode, que àquela altura já media mais de 10 palmos espaçados por polegares, e voltou pro lombo de seu cavalo tanque de guerra. Desapareceram numa nuvem negra de fumaça os dois, mas algo que ali ficou nos deixou um tanto quanto ressabiados: ali onde o viajante apouco havia dado seu primeiro passo, surgiu, do nada, um pau de amarrar cavalo, troço que nem conhecíamos, e uma corda.
Esse foi o nosso primeiro contato com a prisão, e com as intenções de Edemilton Pitombas.
Continua
Dona Terê vive!
Imagem: Minister Of Tangiers, de Georges Jules Victor Clairin.
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