A questionável justiça de Edemilton Pitombas
Por Dona Terê
Nota da autora
As anotações que deram origem ao presente texto foram iniciadas em uma época em que ainda não medíamos o tempo através de números, enfermidades ou rugas. Na realidade, é possível que naquele tempo o tempo ainda nem existisse, e a nossa régua para calcular a cavalgada dos dias era apenas o nascer do sol de toda manhã e seu dissolver na boca negra da noite todo fim de tarde. Por isso é impossível, além de impreciso, traçar uma linha cronológica ou algo do tipo a respeito dos acontecimentos narrados.
Afinal, os episódios referentes à alma do mundo não os medem os anos, e sim a intensidade.
É importante ressaltar também que toda informação que compõe a obra é fruto de pesquisa, vivência em campo ou história grafada a golpes de gilete no couro dessa quer vos escreve, Dona Teretetê. Além disso, esclareço que o intuito da coisa não é recriar o surgimento, a ascensão e a queda de Edemilton Pitombas, e sim denunciar seus crimes, questionar a sua lógica e combater sua moral absolutamente imoral.
Por fim, e não menos importante, deixo claro que ainda sinto no alto do céu da boca o gosto férreo de sangue que deu origem à vontade de contar essa história.
Terezinha.
Parte I: A calma.
O cheiro da terra molhada pelo suor do dia era o único cheiro presente em toda imensidão do pequeno vilarejo de HombreLibre, único lugar habitado no mundo até então. A gente de HombreLibre era uma gente simples, de hábitos corriqueiros e fala mansa. Uma gente comum, tal qual a gente, que caminhava sobre o globo sem grandes pretensões ou anseios. Por lá, até a chegada de Edemilton Pitombas, não havia grandes causos a serem contados ou acontecimentos dignos de lembrança. Os dias passavam iguais, insignificantes que só, e existir era a única preocupação que se podia ter numa terra quieta e serena como aquela.
Durante o dia a lida era levada de leve, respeitando a vontade e o desejo daquele que labuta. Durante a noite as reuniões eram frequentes, e a cidade se encontrava entre sorrisos e copos, na praça principal, para comemorar a chegada da lua e o início do ócio que a noite trás.
Como não havia riqueza, a pobreza ainda não tinha sido inventada, e todos gozavam da belíssima sensação de felicidade que só a ausência de classes pode causar na humanidade.
Além disso, não havia grades ou muros em toda a extensão do lugar, de modo que visto de onde fosse o vilarejo não passava de uma imensidão verdejante donde se podia esticar as canelas e contemplar o céu sempre que fosse possível, ou preciso.
Como não havia riqueza, a pobreza ainda não tinha sido inventada, e todos gozavam da belíssima sensação de felicidade que só a ausência de classes pode causar na humanidade. Todos eram iguais, dignamente iguais, e não havia vontade ou necessidade de acumular ou somar. A partilha, vejam só, era a única lógica estabelecida entre os habitante da aldeia. O resto era vida que pulsa, corpo que ginga, boca que canta e que beija em nome da liberdade.
Essa que vos escrevinha era a responsável pelo semanário local, restrito à produção literária e artística, afinal onde não há manipulação também não há de se ter notícias a serem impressas. A tinta e o papel eram gastos apenas com a beleza e os tabloides disponibilizados toda sexta em meio ao paço público, esse, ao invés de cimento era feito de sonhos e escancarado ao público para o exercício do delírio.
Como não havia calendário, também não haviam dias úteis ou feriados, e sempre era tempo de labuta e de ócio, de acordo com a vontade de nosso povo. Como também não existiam datas, comemorávamos sempre que havia a necessidade, e a celebração cotidiana era um acontecimento cuja a única condição era a expressão da vontade da população local. Foi numa dessas celebrações, entre o transe coletivo e a tragédia anunciada, que chegou a notícia de que um corcel negro rasgava o oco do mundo em direção a Hombrelibre. No lombo do corcel um homem de bigodes torcidos e pança protuberante bufava e suava: era Edemilton Pitombas. Me lembro bem que foi o cego Jacinto, que da escuridão de sua iluminação profana, anunciou em forma de poema a chegada do forasteiro que cavalgava em direção à nossa aldeia. Do alto do monte o centenário cidadão de HombreLibre contou suas palavras que tomaram o céu de nossa terra feito corvos em revoada:
“Caminha para HombreLibre
De Pança cheia e alma vazia
Aquele cujo as algemas
Hão de encarcerar as nossas vidas”
Era tarde da noite. A lua então se apagou no alto do céu, deixando a escuridão cobrir de medo e de temor todo o horizonte de nosso pacato vilarejo.
Continua
Dona Terê vive!
Imagem: Minister Of Tangiers, de Georges Jules Victor Clairin.
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