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Atualizado: 21 de jun. de 2022

A guerra santa de Mumbirá

Por Dona Terê



Lá adelante, donde se é possível vislumbrar com um tanto de paixão e outro tanto de tédio a barra do dia; lá bem longe, onde a vida se esconde e o coração palpita em notas de desespero; ali, entre a porta do céu e os confins do inferno, vive a lembrança de uma terra condenada à poeira da injustiça. Uma terra massacrada pela mão estrangeira do interesse e da dominação. Uma terra morta, assassinada, coberta pelo cheiro de cal e reconhecida pelos gritos de horror que insistem em amaldiçoar o silêncio que ali reina, única herança deixada pelos algozes de todo um povo. O silêncio: represa de gritos e dores afogadas em sangue e calcificadas pela indiferença. Ali, onde antes havia tanto, hoje nada mais há. Ali, logo ali, dentro de mim, fica a não terra de um não lugar chamado Mumbirá, e é sobre lá, que de cá, escrevinho.

Naquele tempo o trabalho não passava de descanso e o dia corria leve, assim meio de canto de boca, entre um sorriso e um trago que anunciava o pratear da lua por entre as colinas nuas de Mumbirá.

Essa que vos chora conduzida pela memória do açoite, Dona Teretetê, munida de sua xícara de café quentinho, uma baita broa de milho e seu inseparável rapé, resolveu dessa vez entregar-se inteiramente aos rodopios da reminiscência e contar a história de uma de suas terras, e dos muitos que formam sua gente, cavalgando no lombo de um tempo onde nem mesmo a mais empoeirada lembrança consegue chegar sem romper o peito e estraçalhar, no breu da sala, toda a louça da casa. Vamos lá:

Mumbirá, à época de meu insignificante rebentar, era um pequeno paraíso terrestre, cercado por colinas verdejantes e infestadas de ladeiras onde víamos correr crianças e fantasmas, moças e senhores, em direção à felicidade que estava presente em todos os cantos. Naquele tempo o trabalho não passava de descanso e o dia corria leve, assim meio de canto de boca, entre um sorriso e um trago que anunciava o pratear da lua por entre as colinas nuas de Mumbirá. Como era bonito o céu naquelas tarde. Ainda me lembro-me bem. Quando tudo se passou?

Isso já não sei...

É impossível precisar o tempo quando este escorre pelos vãos de minhas velhas mãos tatuadas através dos séculos em que caminho por esse mundão calabouço. Impossível. Certo é que os desuses, todos eles, ainda estavam vivos nessa época e não passavam de meros mortais, alguns com manias de grandeza e vontade de eternidade em suas presas. Ainda assim, graças a ele, ou eles, não eram deuses. Ainda.

Eu, que nunca fui criança e já nasci menina feita, lembro que sai do ventre direto pro céu, carregada por borboletas, e o farelo de suas asas grudaram tão profundamente em minhas recém-abertas pálpebras que até hoje quando fecho os olhos sinto a areia do tempo fazendo folia em minha íris laceada pela tristeza. Pois muito bem, rapé posto e enfileirado, lembrança na ponta da planta da vida orvalhando tudo que é saudade. Rodopia memória!


O carnaval, que já corria em nossas veias, tinha acabado de dar seu primeiro suspiro. A avenida principal era uma festa de dança e de chamas, tudo corria feito água potente no nascedouro de nosso rio travestido de vilarejo.

Mumbirá, que aos meus olhos de garota sempre fora o paraíso que ainda não havia sido patenteado por um cristão vestido de mágoas, e era ali em que vivíamos até que se deu o quiproquó. O carnaval, que já corria em nossas veias, tinha acabado de dar seu primeiro suspiro. A avenida principal era uma festa de dança e de chamas, tudo corria feito água potente no nascedouro de nosso rio travestido de vilarejo. Nossa natureza era a mesma, nosso horizonte límpido e não havia uma única pessoa em Mumbirá que não fosse exatamente como deveria ser: livre. O delírio descia as ladeiras em transe coletivo quando no romper da aurora surgiu, em uniforme de alta patente celeste, um tipo desconhecido desses que chegam do nada e correm pra lugar nenhum. O confete salpicava o raiar do sol e as bebidas e copos tilintavam em sinfonia feito fosse impossível não sorrir naqueles dias. Era tudo de um colorido só, inda me lembro. Era mês de fevereiro.


... o tal general alado, vindo da desconhecida Gicaleb, trazia em sua razão a insanidade do herói cristão que sempre diz não.

Coberto por um manto azul celeste que disfarçava o vermelho de seus planos, o tal general alado, vindo da desconhecida Gicaleb, trazia em sua razão a insanidade do herói cristão que sempre diz não. E passou a proferir discursos mudos, e a ensurdecer pouco a pouco os habitantes inocentes de Mumbirá. De todos os meios de dominação, não sabíamos que o mais perigoso é aquele que nos divide, que nos cataloga por tipos e acaba, propositalmente, separando irmãos que sempre enfrentaram a vida de mãos dadas. Assim, sem aviso ou consulta prévia, o general enterrou sua própria cruz em nosso peito e, sem rodeios ou pudores, colonizou e encarcerou as nossas almas.

Foi doído que só...


Tínhamos agora as mãos sujas de sangue e a cabeça vazia. As flores que antes haviam em nossa terra agora brotavam do ódio, cresciam feito ferro fundido e se abriam em foices, facões e machadinhas.

No centro de nossa praça ergueram um monumento à razão. Pra banda de lá, decidiram, sabe-se lá como, que vivam os Mumbi. Pra banda de cá, batizaram os moradores de Umbirá. Foi tudo muito rápido. Quando vimos, cada lado achava que o outro era privilegiado pelo senhor celeste que, feito um Deus, inventava e criava intrigas, jogando uns contra os outros, criando guerras e conflitos absurdos esperando que o nosso povo, antes uma gente única, fizesse o seu trabalho sujo de assassinato em nome da ordem que ele mesmo havia inventado. Foi uma barbaridade. Irmãos, que antes dividiam mesas e histórias, se degladiavam e se matavam em praça pública enquanto aquele general obeso se alimentava do sangue e das riquezas de nossa terra e de nossa gente. Tínhamos agora as mãos sujas de sangue e a cabeça vazia. As flores que antes haviam em nossa terra agora brotavam do ódio, cresciam feito ferro fundido e se abriam em foices, facões e machadinhas. O que antes era sol, agora não passava de uma nuvem densa de cal e morte, e o seu cheiro se espalhava pelos cantos, pesando o ar e sufocando o peito de todos. Era o inferno patrocinado pela palavra de um Deus que acabará de ser inventado. Era o fim de Mumbirá. Era triste demais pra se lembrar e importante demais pra se esquecer.

Era, foi, ainda é...

Dessa vez não houve vitória ou revolta. Dessa vez não houve choro nem vela pra contar o fim da história. Depois de dividida nossa cidadela nunca mais se uniu e guiada até o precipício pelas mãos de um general dos infernos, saltou sem titubear. Quem não fugiu, como eu, foi golpeado por algo: um amigo, um vizinho, uma doença incurável feito a raiva que brotava em nossos corações regadas pelas ideias obscenas daqueles forasteiros. Dessa vez não houve coquetel molotov nos alicerces da razão ou bomba caseira na casa do patrão. Dessa vez não teve jeito: estava aberta a gaiola de deus e no fundo dela havia apenas um homem, ou era uma mulher, não me lembro, morrendo de amor e desespero em nome da fé.



Dona Terê vive!

Imagem: Foto de maragato sendo degolado, Acervo da Biblioteca Nacional.

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