Quando gente vira água
Por Dona Terê
A brisa da noite corria molhada pelo horizonte orvalhando tudo que é troço que encontrasse pela frente: pedra, areia, lombo de burro, curumim, tudo que é tipo de gente; era uma molhadeira só.
A lua cheia prateava a imensidão do alto do bucho do céu e uma nuvem negra servia de coberta às estrelas que estavam de folga naquela noite. Lá em cima, do alto do topo do monte, donde se pode quase tocar com a ponta do nariz o feno do tempo, ali, naquele alto quase inatingível, Salomão, filho de Dito, resolveu esticar as canelas secas por mais um dia de serviço e tristeza para, sozinho e em segredo, contemplar a escuridão do céu de São Clemente. Já de pé, sentindo o sangue lhe tamborilar as pernas tortas, deu uma puxada de ar daquelas que guardamos para segurar choro ou vômito e sentiu o cheiro daquela terra, a terra onde havia nascido e de onde nunca havia saído, se estraçalhar contra sua cavidade nasal cimentada pelo desgosto e pelo tédio. Surpreso, e até um pouco confuso, percebeu que pela primeira vez na vida o cheiro de sua terra, e o mal cheiro de sua gente, já não eram mais perceptíveis. Era como se por obra do acaso, ou feito de bruxaria, seu nariz tivesse parado de funcionar subitamente. Olhou ao redor na esperança de encontrar algo que pudesse levar ao cheirador para testar se o olfato ainda funcionava mas não encontrou nada. O monte não passava de uma imensidão de terra, grama e bosta; de modo que era impossível testar o funcionamento de seu nariz daquela forma.
Vasculhou tanto dentro de si, que encontrou no peito o medo que havia esquecido guardado desde o dia em que seu Tio Omar lhe atirou na cara de uma só vez a morte do pai e a responsabilidade de cuidar da viúva, sua mãe, e de toda a família do falecido; como se ele mesmo não fosse um dos órfãos desamparados pelo recém-desencarnado.
Diante da impossibilidade Salomão decidiu começar de maneira simples: lembrando do cheiro das coisas. Foi então que o rapaz voltou a se sentar e sentiu uma pequena festa nas pernas, que agora formigavam para lembra-lo de que ainda estavam ali apesar do susto. De olhos fechados, a respiração controlada pelo diafragma, começou a cavocar na memória laceada pelos excessos pequenas lembranças que ao invés de imagens tivessem cheiro. Nada. Procurou tanto, que encontrou no oco de si o farelo das asas das borboletas que faziam festa no seu estômago quando Natália lhe sorria no pátio do Lino di Marco. Vasculhou tanto dentro de si, que encontrou no peito o medo que havia esquecido guardado desde o dia em que seu Tio Omar lhe atirou na cara de uma só vez a morte do pai e a responsabilidade de cuidar da viúva, sua mãe, e de toda a família do falecido; como se ele mesmo não fosse um dos órfãos desamparados pelo recém-desencarnado.
Era tanto vestígio de uma vida ressecada pelo tempo que Salomão, de repente, lembrou-se que apesar de tudo ainda era gente, e de que gente sente, sente muito, por mais que tente guardar no seu oco mais profundo aquilo que bate feito temporal no coração da gente.
Chorou os amores que sufocou no berço, os sonhos que permitiu que o sol estraçalhasse e os olhos azuis e tristes de sua mãe encurralada pela morte.
A mobília de dentro de si estava empoeirada, é bem verdade, mais ainda estava de pé na árida sala de sua memória. O peso daquela poeira toda apertou-lhe o tórax, sufocou a garganta e encharcou os olhos mortos. Com a torneira do desespero aberta foi impossível não chorar diante daquela escavação espiritual. Salomão, ainda sozinho e em segredo, chorou como há muito não se permitia. Na verdade, mesmo sem perceber, o rapaz tinha desaprendido a soluçar, a engraxar os olhos com o peso da alma. Chorou tanto, mas tanto, que se desabou em água e recordações, compensando todos os anos em que manteve-se seco e infértil. Chorou os amores que sufocou no berço, os sonhos que permitiu que o sol estraçalhasse e os olhos azuis e tristes de sua mãe encurralada pela morte. Salomão chorou, chorou muito! Chorou tudo o quanto podia e tudo que devia ter chorado antes. Chorou a vida que tardia no peito massacrado pela rotina, chorou a raiva que sente diante de cada tapa quente que toma na fuça e a dor inigualável de cada tiro que aguenta nas têmporas. Salomão era água pura, límpida e sentida, feito um oceano de raiva, medo, dor, decepção e arrependimentos. Ali, do alto daquele monte, Salomão fez-se lágrima ao invés de fazer-se homem e se liquefez diante daquele horizonte inodoro que já não reconhecia mais. Cada músculo e cada vaso sanguíneo de seu corpo transformou-se instantaneamente em água. Eram gotas e mais gotas de homem que juntas formavam uma mistura densa e cristalina que escorria vagarosamente pelas curvas do monte.
Salomão, estraçalhado pelas lembranças, decapitado pela memória, era agora procela, onda violenta, tsunami que se debatia contra tudo o que era parede.
Salomão, agora enxurrada, ganhava cada vez mais peso no peito e a força de suas torrentes varriam tudo o que havia pela frente: pedra, areia, lombo de burro, curumim, tudo que é tipo de gente; era uma gritaria só. O luar já havia se recolhido e a tempestade de menino se encarregava de enegrecer o que restava de céu no teto daquela gente. Era tormenta, beijo na boca, indecisão diante do parapeito. Era prece soprada pelo vento, ofensa dirigida a Deus, era muito. Era água a dar com pau, era lágrima pra afogar meio mundo. Virge santa!
Salomão, estraçalhado pelas lembranças, decapitado pela memória, era agora procela, onda violenta, tsunami que se debatia contra tudo o que era parede. Sua força contorcia ferros, rabiscava o infinito e destruía o que via pela frente: pedra, areia, lombo de burro, curumim, tudo o que é tipo de gente; era uma judiação só. Até que assim, meio de repente, depois de cobrir com seu mar de lágrimas o último tijolo da última casa de São Clemente, Salomão deu-se por satisfeito. Sua força pouco a pouco foi se dissipando e o lombo de suas ondas se aquietando até virar um lençol branco de calmaria, uma paisagem de descanso.
Então, uma terra ainda quente de sua ira começou a lhe sugar por inteiro pra dentro de seu oco até não sobrar uma gota se quer do que um dia havia sido a aldeia de São Clemente. Terra, homem, bicho, mato e até entidade dos ares; nada escapou do peso das lágrimas de Salomão. O mundo era todo seu e havia virado um barro só, que ao despontar do primeiro raio de sol se transformou em poeira varrida pelo vento, correndo no lombo do tempo e levando pra longe tudo o que restava de São Clemente.
E assim, na secura daquele dia, na delicadeza amarga daquele instante, deu-se o fim de tudo. Não restou nada. Hoje por aquelas bandas nada se planta, nada se colhe, nada se faz. O ar parado, pesado e disforme tem um jeito rarefeito de lembrança e carrega em cada gota de chuva que não cessa nem molha o insuportável mal cheiro da saudade.
Dona Terê vive!
Ilustração: Daniel Soares
Comments