A multidão solitária e os inventores do vazio
Por Dona Terê
Há muito tempo atrás, numa época tão distante donde é impossível se-haver-se qualquer tipo de registro ou lembrança, Dona Terezinha, essa que vos escreve, presenciou um inverno sem tempo ou duração. Um inverno congelante, paralisante, sem medida ou precedentes. Era um frio danado, devastador, que congelava o peito da gente e nos obrigava a tremer de desespero, e nos paralisava de tédio e de medo. Era dose. Mas, como antes de toda tempestade há, obrigatoriamente, uma festa solar, eu, insignificante Tetê, começarei o causo louvando o verão em que vivíamos até o sol desaparecer da pacata vila de Ustémísmó.
Me lembro como se fosse hoje: Fazia uma tarde dourada, dessas que desanuviam até os problemas da gente. Eu, Dona Teretetê, seguia meu rito sagrado de toda manhã antes de ler o semanário que repousava no alpendre: café preto, broa de milho quentinha, rapé pra arejar o peito. Quando rompia o terceiro dos dez espirros curtos que o diamante provocava ao me-limpar-me as ventas, senti um calafrio me-esmurrando-me a espinha feito um ricochete que surge do nada. Arrepiei. De bate-pronto saquei do bolso da anágua o lenço de seda, limpei o rastro de tabaco do buço e mirei a janela: nada, a não ser um frio polar que marchava e uivava pelas frestas da existência.
De longe até pareciam humanos, no entanto, ao olhar de perto, percebi que aqueles seres não tinham face.
Primeiramente não dei lá muita trela ao gelo que insistia contra a janela. Banho quente, leitura despretensiosa, cama, drink e coberta. Dormi um sono intranquilo, culpa do abuso alcóolico de horas antes. A verdade é que tomei três drinks e resolvi não fazer a janta. Dormi de estômago vazio e alma acariciada. Acordo de susto antes do galo. Paciência. Café preto, broa de milho quentinha, rapé pra arejar o peito. Leitura disciplinada. Almoço. Era quase duas da tarde de um dia impreciso. O sol havia resolvido sair de cena, tocando o bonde e se mandando no meio do dia. Esquisito tudo isso, pensei. E a estranheza da coisa só piorava pois junto à escuridão chegou a Ustémímó uma gente sobre a qual nunca havíamos ouvido falar. Ninguém por ali os tinha visto antes. Pareciam como nós, mas não exatamente. De longe até pareciam humanos, no entanto, ao olhar de perto, percebi que aqueles seres não tinham face. Era como se a nossa vila, nosso pequeno paraíso, fosse invadido por borrões que ao invés de mãos traziam marretas nas extremidades dos braços.
Com discursos, ferramentas e até mesmo presentes, vendendo ao pouco de nossa gente o muito que traziam de longe, cultivaram em nosso ventre a conformidade e o acordo feito fossem uma religião nascida de nosso próprio corpo, agora transformado em pecado.
Era uma gente estranha mesmo, hoje percebo melhor. Chegaram de banda, acomodaram-se aos poucos e tornaram-se paisagem batida em nossa pequena e agora tão fria e escura vila de Ustémísmó. Na beira do tempo da estrada de nosso futuro resolveram armar acampamento. E ali ergueram certezas e templos, e ali criaram um imenso vazio que aos poucos se expandiu até tingir com o nada e o nunca o último tijolo dourado de nossa aldeia. Era uma gente estranha, dessas que causam medo e calafrio no oco que esculpem na alma da gente. Que gente era essa? Não sei, mas me pergunto isso ainda hoje: quem são? Quem eram?
Esse povo sem rosto aos poucos mostrou que também não tinha passado ou pudores. Vinham sei lá de onde a procura de sabe-se lá o que. Com discursos, ferramentas e até mesmo presentes, vendendo ao pouco de nossa gente o muito que traziam de longe, cultivaram em nosso ventre a conformidade e o acordo feito fossem uma religião nascida de nosso próprio corpo, agora transformado em pecado. Pouco a pouco, entre a servidão e a dúvida, organizamos a vila de Ustémísmo como um formigueiro. Viramos, sem perceber, servos daquela gente, e a causa de nossa prisão, os gomos de nossas correntes, não eram as palavras de um ditador mas a o nosso próprio desejo de agradar aqueles estranhos sem face que nos-adulava-nos com adjetivos e promessas. Sem apresentar resistência ou organizar revoltas estávamos reféns de anônimos em nossa própria terra.
Com o tempo a coisa foi piorando. Aos poucos tiraram tudo de nós: nossos sentimentos, desejos e empatia. Assim, sem perceber, feito uma doença que chega do nada, cada cidadão da vila de Ustémísmo renunciou ao sentir e ao querer. Hoje vejo que aquela apatia e toda aquela falta de emoções eram uma maneira inconsciente que a nossa gente inventou para fugir do bote da ansiedade. Com a cara maquiada pelo perigo, incapaz de vencer o medo, a antes brava gente de nossa vila aprendeu, na base da servidão, a evitar a sensação do perigo que aqueles rostos/borrões representavam. E assim seguimos em direção ao passado, matando em nome de um deus desconhecido e lustrando os nossos próprios grilhões com sorriso no rosto. Era um absurdo. Um abuso. Era o próprio horror!
Tempo que corre...
Nessa época Ustémímos não passava de um imenso vazio perdido no mapa-mundi. Ali não havia lei ou ordem que não fossem as deles, não havia direitos pra nossa gente, apenas deveres, e o inverno forçado colocado dentro de nosso peito tornara-se pesado, denso, suicida. Era impossível ser feliz naqueles dias sem o aval e a permissão dos homens sem cara e a felicidade deles dependia exclusivamente da nossa própria desgraça. Eram tempos difíceis, de broa de milho seca, café passado a frio e rapé úmido. Era o inferno na terra. Era o nada misturado com o pouco da gente que ainda restava ali. Era o fim dos tempos conforme conhecia nossa cidadela. Acho que nessa fase do processo já havíamos deixado de ser gente. Cada cidadão de nossa opaca vila tornou-se um espelho quebrado, sem vida, refletindo apenas o que aqueles seres obscenos esperavam de nós. E assim vivíamos sem viver, e assim morremos sem direito a enterro ou adeus. Assim, sem perceber, tornamo-nos mortos-vivos perambulando por uma realidade besuntada de fel e desesperança. Assim, sem perceber mas concordando, anunciávamos e defendíamos a nossa própria escravidão.
Era a revolta que pururucava o seu coro, fazia correr em suas veias um vermelho denso de coragem e cochichava em seu ouvido: “a saída para Ustémísmó é ustémísmó”.
Os inventores do vazio seguiam com seu reinado de horror quando um rebelde, ainda com um pouco de sangue correndo nas veias laceadas, resolveu se levantar. Ele andou durante séculos em direção à eternidade. Sozinho, gelado e com fome, seguiu caminho pro norte. Perto de Hombrelibre, um vilarejo fantasma, parou para um trago imaginário e dormiu oito dias e nove noites. Acordou a tarde, renovado, e deu de cara com um sol dourado de redenção que arrancou lágrimas de seus olhos áridos e mortos. Era a vida que voltava a correr no seu sangue que engrossava com a luz solar. Era a revolta que pururucava o seu coro, fazia correr em suas veias um vermelho denso de coragem e cochichava em seu ouvido: “a saída para Ustémísmó é ustémísmó”. E ele então voltou pra nossa terra, e criou focos de resistência, e trouxe no fundo do céu da boca um tanto de sol e outro tanto de grito que, pouco a pouco, boca a boca, devolveu novamente ao nosso povo o desejo e o sentir.
Renovados, experimentamos novamente a vida que já não mais tardava em nosso peito, agora em brasas. Éramos novamente livres: livres para pensar, para sentir, para desejar. Era uma folia só dentro da gente. Aí, quando sentimos, reconhecemos a raiva. E então, quando desejamos, pedimos a vingança. Foi um quiproquó danado! Hoje, falando assim de repente, chega a dar dó dos homens sem face quando conto o tamanho dos dentes de nossa justiça tardia. E a coisa foi linda, coisa linda de ser ver mesmo! Borrão por borrão, razão por razão, fomos assassinando um a um cada fantasma sem rosto que nos assombrava e nos julgava. Ustémísmó tornou-se um palco de sangue e de troça. Com o muito da nossa carne e o pouco da nossa piedade devoramos aqueles covardes que por séculos nos fizeram escravos. Foi foda!
E quando a última garganta cortada adubou de sangue a nossa terra fraca, foi possível ver surgir de novo em Ustémímós a árvore da esperança. Ao longe, na meiota do horizonte, nasceu um sol feito de bronze e sem força que traduzia o cansaço de nossa luta. Descansamos muito. Foram 04 anos e 08 meses de hiato até que a nossa vila voltasse de fato ao mapa por conta nossos braços tatuados de glória.
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