Dona Terezinha e a ninhada que roía memórias
Por Dona Terê
“Um refúgio?
Uma barriga?
Um abrigo onde se esconder quando estiver se afogando na chuva, ou sendo quebrado pelo frio, ou sendo revirado pelo vento?
Temos um esplêndido passado pela frente?
Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida”.
Eduardo Galeano
I
A tarde luzia do lado de fora do alpendre de onde eu, Dona Terezinha, assistia ao espetáculo do entardecer. Anoitecia lá fora, e essa que vos escreve, xícara de café em mãos, assistia ao esforço do horizonte que pouco a pouco engolia o muito do sol com sua bocarra de ontem. Naquela época não contávamos os anos, os calendários ainda não se moviam pelos cantos do tempo e por mais que houvessem rugas em nossa tez era certo que ninguém envelhecia. A vida, apesar de dura, não doía tanto. Ao menos até aquele pôr-do-sol.
II
A noite veio calma, quase serena, e trouxe consigo uma névoa densa que mais parecia um tanto grosso de poeira a descansar no batente da vida. Eu, Dona Terê, já tinha trocado a xícara quente de café por uma taça trincada de vinho e, ainda parada no alpendre, pude ver, testemunha única, a revoada que vinha de longe mas que parecia ter pouso certo: a nossa realidade. Naquele momento, amortecida pelo vinho, não dei a devida atenção aos roedores, vim saber depois, que se precipitavam na longínqua borda da minha janela. Eram ratos. Ratos alados, desses com dentes de fera e que emitem um barulho danado do fundo de suas ventas. Eram ratos, ratos gordos e bem nutridos, que não estavam em busca de nossos sacos de farinha ou de nossos restos de comida. Eram ratos obesos, gigantescos como se fossem gente e entupidos até a garganta de alimento e de ira. Hoje, pensando bem, chega a ser absurdo como se moviam rapidamente naquele começo de noite apesar do ventre gelatinoso, resultado do bucho cheio, que traziam acima do umbigo de onde vertia uma espécie de areia.
III
Sala de casa. Corre o vinho pra dentro da goela. Eu, Dona Tetê, acabei adormecendo no braço pequeno daquela poltrona feita de ossos. Dormia um sono tranquilo, quase que pesado, enquanto a lua bailava no céu prateando o dorso da igreja que ostentava no topo de sua torre um sino, uma rosa despedaçada e um padre enforcado. Acordei subitamente: havia um rato roendo meus retratos, outro devorava meu diário e um terceiro, o maior e mais corpulento de todos, se esbaldava no semanário que havia deixado em cima da mesa de centro sem nem mesmo ter lido o maldito. Grite. Gritei muito, em alto e exagerado tom. Gritei tanto que o rato mais gordo, deitado na foto de uma socialite, soltou um estrondo vindo do peito em forma de traque e partiu levando dentro de si todo o dia que havia se passado. Com a boca enfeitada pela borra da uva olhei o estrago. Parei um instante, cigarro de palha entre os dedos, e dei-me por vencida naquela noite. Voltei ao braço da poltrona e me deixei levar pelo abraço leve do sono recém interrompido em minha câmara feita de ossos e alienação.
IV
O sol nasceu, eu continuei dormindo. Aos poucos, respeitando minha natureza preguiçosa, comecei o dia como sempre: café preto, broa de milho e rapé pra arejar o peito. Um cigarro e um afago. Ajeitei a louça, matei um inimigo, limpei o sangue do avental e me pus a arrumar a bagunça que os malditos escamoteadores haviam deixado como cartão de visitas. Tudo limpo. Rompi a porta da casa, donde ainda se podia sentir o cheiro da pólvora, e sentei na varanda esperando Godot, aquele furão irremediável. Enquanto enrolava mais um cigarro dei um olá a Dona Francisca: não houve resposta. Soube depois, quando o velho que não me lembro quem disse que ela já não sabia quem era: haviam roído seus documentos, sua certidão de vida e de casamento. Dona Francisca era agora um fantasma, o primeiro de todos nós.
Aquela cidade, cujo o nome é impossível me lembrar, já não vivia mais. Haviam se passado dias, meses, anos, séculos; quem sabe? O certo é que não passávamos de uma aldeia assassinada, habitada por fantasmas e tudo isso por conta da fome dos malditos roedores verde-oliva.
V
Passaram-se dias. Os fantasma se multiplicavam com a mesma voracidade com que os roedores devoravam tudo:. Roeram tudo. Depois de ver o que aconteceu com Dona Francisca, agora nosso fantasma número zero, paciente primeiro de nossa própria miséria, resolvi guardar meus documentos numa caixa de ferro que havia ganhado séculos atrás da própria mão justiceira de Deus. Ainda tinha nome, sobrenome, pai, mãe e data de nascimento, mas não sabia ao certo os caminhos que tinha atravessado até chegar àquele alpendre feito de gesso e comodidade onde passava as tardes esperando a rataria. Com a falta de cuidado, e a inexistência da coragem naqueles tempos, já havia perdido a noção de quantos filhos tinha, até mesmo se os havia concebido, e cavocava no oco da cuca alguma pista que me levasse a mim mesma. Nada. Achei que fosse culpa do excesso de vinho, não era.
VI
Aquela cidade, cujo o nome é impossível me lembrar, já não vivia mais. Haviam se passado dias, meses, anos, séculos; quem sabe? O certo é que não passávamos de uma aldeia assassinada, habitada por fantasmas e tudo isso por conta da fome dos malditos roedores verde-oliva. Naquele dia, o ultimo que vivemos, me disseram que os cretinos haviam roído a carne recheada de memória do velho que morava a três ruas e quatro árvores em direção ao leste. Não recordo agora seu nome. Me parece que sabia de Dona Francisca. Não sei. Misturando passado, futuro e presente eu não passava de uma velha decrépita com uma xícara de café nas mãos, uma caixa de ferro no fundo do guarda-roupas e toda a raiva do mundo presa entre os dentes artificiais. Jurei vingança contra os ratos, apaguei o cigarro e passei a noite em claro na esperança de não apagar mais nada que vivia em mim por conta da fome dos ratos.
VII
Corre areia no fundo da ampulheta. Não sei ao certo se havia ou não tempo naqueles cafundós mais. Nessa época o dia já não existia e tudo não passava de uma imensa noite sem fim. Eu já não pregava os olhos, já não sabia o que seria isso ou tentava ser aquilo, já não tinha mais paz ou paradeiro. Lá fora a coisa era absurda: o rato mais gordo, aquele que tinha predileção por semanários, havia convencido os pobres fantasmas sem memória de que ele, aquele bicho imundo e sem alma, era agora o rei daquele pedaço de chão sem história. De seu trono feito de lixo, roendo os ossos de homens e mulheres desaparecidos, dava ordens absurdas a uma gente morta. Eles, evidentemente, obedeciam; ora por hábito, ora por mania, sempre por predestinação, como ficava evidente. O gordo roedor abusava, matava e fazia viver, criava mentiras, maquiava números e, quando colocado contra a parede, sacava de seus caninos feito fossem metralhadoras e saia a roer qualquer ameaça que pudesse lhe fazer retroceder daquela megalomania travestida de estado. Nada de bem-estar. Continuou assim, gordo e genocida, na criação de sua terra do mal. Impune, imperfeito e acobertado por outros ratos, tão gordos quanto eles, que se preocupavam apenas com suas próprias presas ao invés de pensar em nós. Triste realidade. E eu, pobre Terezita, assistia a tudo do alto de minha torre de gesso, ao lado de minha pouca lembrança, defendendo minha caixa de ferro que guardava, sem saber, tudo o que eu fui, era e um dia poderia ser.
IX
Dia 02 de Agosto, o ano é impossível precisar. Eu havia encontrado um jornal do dia, meio roído, meio amassado, que tinha voado do trono do obeso rato até a lâmina de madeira de minha janela. Senti o cheiro daquele cretino na página principal, ainda úmida por sua baba fresca. Era um exemplar único, sobra do assombro, e a sorte o trazia até a minha casa. Eu ainda não sabia, e nem poderia saber, que havia um jornal circulando, com notícias não apuradas, mentirosas, e que ele existia apenas para saciar a fome de memória e de poder dos malditos ratos que, pasmem, só comiam notícia requentada: só mastigavam o jornal de ontem. Foi então que percebi que a saída para lutar contra o mostro que se alimenta de memória, que usa o horror para devorar o ontem e violentar o amanhã, é regar obsessivamente o agora, é cultivar o hoje.
X
Dia D. Eu, Dona Teretete, senhora do acaso e rainha do caos me coloquei diante da tropa. Éramos poucos, nosso sangue quase nada, mas havia ali algo que brilhava em cada íris e em cada punho fechado. Resistiríamos, mesmo que na base do suicídio. Lutamos, mesmo com o sangue a nos sufocar o presente. Vencemos! Vencemos? Não sei... há uma ratazana cortada em duas pela janela e a bandeira da imaginação, única possível, se abria ao ritmo da brisa que trouxe novamente o dia depois daquela batalha contra a peste. Acho que sim, que de alguma forma saímos vencedores daquele horror. Não sei. Sabe-se lá. Quem sabe? Eu não. Nunca.
XI
Um gramofone sentimentaliza essa terra e Dona Terezinha atira os seios como pedradas no lago.
O sol nasce no horizonte. Dona Terezinha, vulgo essa que vos escreve, passa uma boa xícara de café, come sua broa de milho dourada, enrola seu cigarro de caboclo e enfia mais uma agulha no oco da barriga magra de um rato semi-morto. Dona Terezinha, eu, sei que é preciso matar todo dia aquele diabo que insistem em roer nossas vidas em nome de sua própria ordem, em busca de saciar apenas a sua fome. Nada de ratos ver-oliva! Nada de roedores genocidas! Nada... Hoje há uma cidade nova, fundada e parida por uma gente que se orgulha do que criou mas que não se esquece jamais daqueles que tentaram nos mataram ontem. No presente, esse agora travestido de vida, documentamos tudo o que havia sumido: fotografias, textos, desenhos, reportagens, depoimentos, saudade. Por aqui, agora, nada mais some que é pra gente saber de onde veio e nunca se esquecer pra onde vai.
XII
Café preto. Broa de milho. Cigarro de palha. Café pra arejar o peito. E toda a beleza do mundo, aquela que fica impregnada em nosso ossos, que mesmo que não pareça esta ali, e que nem mesmo o maior dos ratos consegue roer do fundo de nós.
Ilustração: xilogravura escocesa do século XVII.
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