Angeli presente
Por Daniela Prandi
Ele entra na sala todo de preto, cara de ressaca e encara os jornalistas que estão ali para o entrevistar. "Tudo bem, vamos lá, mas não vou falar DELA", avisa. Ela, no caso, era a Rê Bordosa, sua personagem mais famosa, que ele tinha acabado de matar, a contragosto de muitos.
A desbocada Rê Bordosa era um sucesso editorial e pela primeira vez aquilo tudo estava rendendo algum dinheiro. Naquela entrevista logo após sua personagem explodir por causa do "tédius matrimonius", os jornalistas queriam, sim, entender o porquê dele fechar a mina de ouro. Assim que Angeli disse que não ia falar sobre, virou um silêncio e, dali a pouco, todo mundo caiu na risada, e foi um momento inesquecível ver Angeli se divertindo também. "Que bom que vocês acharam engraçado."
Anos depois, já neste século, em uma entrevista solo, contei a ele sobre esse momento. Não se lembrou, mas se divertiu e desta vez falou. Lembrou que na época não aguentava mais a personagem porque “quando não sabia o que fazer, a desenhava". Angeli admitiu que poderia ter ganho muito dinheiro com a Rê Bordosa, mas que decidiu se livrar, e tudo bem.
Os quadrinhos no Brasil viviam uma época de ouro, com muitas revistas gringas chegando e algumas brasileiras buscando seu lugar e fazendo história, como a Chiclete com Banana, criada por Angeli, sucesso editorial que de uma tiragem inicial de 20 mil exemplares chegou a atingir 110 mil no seu auge.
Estamos nas duas décadas finais do século passado e ainda existiam bancas de jornais, revistas e gibis forradas de novidades a cada esquina. Nos jornais, Angeli dominava nas charges políticas da página 2 da Folha de S. Paulo, que ele ocupou por mais de 40 anos, e nas tirinhas da Ilustrada, que nos divertiram com personagens impagáveis como Wood & Stock, Skrotinhos e Bob Cuspe.
Nos meus tempos de jornalista nos cadernos de cultura encontrei Angeli muitas outras vezes, principalmente nas entregas do Prêmio HQ Mix, que Angeli venceu na categoria “Melhor Desenhista de Humor Gráfico” por 16 anos seguidos, de 1997 a 2012. Em uma dessas ocasiões, ao participar do lançamento de um dos especiais dos "Los Três Amigos", ele me apresentou ao Laerte e ao Glauco.
De repente, “Angel Villa”, “Laerton” e “Glauquito” estavam bem na minha frente, não consegui falar nada e só ri e recebi os abraços que eles me deram. Glauco, do "Geraldão", tinha um jeito tímido e querido, e Laerte, ainda "o" Laerte, junto com Angeli, se preparavam para entrar no palco e estavam muito animados. Tinha muita gente esperando por eles e eu vi, naquele momento, a mágica da transformação, de cartunistas para celebridades.
Em uma outra ocasião, em uma pauta em São Paulo, fui a uma entrevista com o Adão Iturrusgarai, o "quarto amigo", e do nada Laerte aparece e participa da conversa também. Ali, fiquei sabendo uma novidade: eles iriam trabalhar na TV Globo, em um novo programa infantil, chamado TV Colosso. A pauta virou outra e o resto da história, quem assistiu, lembra da sheepdog Priscila. Ainda me divirto com a lembrança de quanto a informação de que o programa iria substituir o Show do Mallandro os fazia rir, gargalhar.
Arnaldo Angeli Filho, que completou 68 anos em agosto, encerrou a carreira em 2022 por causa de uma doença degenerativa chamada afasia. Em agosto deste ano, o Instituto Moreira Salles incluiu em seu acervo permanente parte do seu trabalho, que começou a ser selecionado pelo próprio Angeli em 2018, com 2.100 itens (700 tirinhas, 700 charges e 700 ilustrações originais e esboços).
A catalogação e seleção continuam, afinal, são muitos e muitos anos de traço e deboche. Olhando as charges e os quadrinhos daqui do presente é triste constatar que o Brasil e suas desigualdades pouco mudaram.
De tudo isso guardei um desenho que Angeli me entregou, já amarelado, que dá um quentinho no coração. Angeli presente.
“Eu tinha muito medo de ser aprisionado pela Rê Bordosa. Ela era uma personagem que se eu quisesse poderia ter trabalhado de forma bem profissional e ter ganhado muito dinheiro. Mas eu queria manter a Rê Bordosa do jeito que eu pensei, uma mulher da noite, cheiradora, fumeta e que dava pra todo mundo." Angeli.
Daniela Prandi é brasileira, italiana, jornalista, repórter e mochileira.
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