No mundo de Circe
Por Aderval Borges
Líseas parece satisfeito comigo. Para ele, já deu para notar que jamais farei parte do time dos repórteres escorregadios. Comenta que alguns são sinuosos e nunca se sabe o que realmente pensam. Estão o tempo todo à procura de novos espaços e oportunidades. Puxam os tapetes uns dos outros, inclusive dos chefes.
Fingem que ouvem com atenção o que dizem e formulam algumas opiniões com o intuito de apenas marcar presença. Outros se expõem de forma desmedida, comentam o último capítulo da telenovela, a genial campanha da agência de publicidade tal, o escândalo político em evidência, as petas do último técnico da Seleção Brasileira, as declarações imbecis da mulher mais bonita do País, o último meão de um cantor popular, o novo caso de um figurão em evidência e demais assuntos sem sumo.
Tudo com a finalidade de impressionar!
Identifico-me mais com o time dos brucutus nada razoáveis. Esses não fazem a menor questão de parecer que são isso ou aquilo. São mantidos no jornal porque são bons repórteres, só por isso, mas não pertencem a nenhum grupo e nem fazem média com quem quer que seja.
Umberto é um deles. No outro extremo está Pê José, editor de política, um dos raros profissionais que goza de prestígio consensual na redação. É primo de um conhecido articulista de cultura que trabalha em um grande jornal de Centralcitá.
Circe, a deusa feiticeira na mitologia grega, representada no quadro "Taça para Ulisses", de John William Waterhouse
Pê José também não é pouca coisa. É bonitão, tem uma namorada linda, carro importado, bons discos, bons livros e uma inteligência das mais admiradas. Às vezes toma umas conosco, os pés-rapados da redação. Só ele fala. Todos nós lhes damos esse direito, pois no final é ele quem paga a conta.
Mas não é só por isso. Ouvimos Pê José com devotada atenção porque o consideramos um sujeito mais bem informado que nós. Dessemelhante, se inveja matasse, o nome de Pê José já estaria numa lápide há muito tempo.
A verdade é que todos nós, pés-rapados, venderíamos nossas almas para ser como ele. Embora cheio da bufunfa, Pê José continua honrando o passado de líder estudantil. Ainda se diz “de esquerda” e tem na ponta da língua as mais representativas citações dos clássicos maximalistas.
Os professores de ciências política da Universidade de Diteincitá o têm em alta consideração. Realmente o prestígio de Pê José é dos mais sólidos, tão firme quanto os vincos dos seus ternos impecavelmente engomados.
Tudo leva a crer que jamais teve problemas na vida ou sequer um momento de angústia, depressão. Afinal, tem de tudo de bom. Até em demasia! Há quem acredite que nem mesmo uma vulgar enxaqueca o tenha molestado durante sua vida plena de êxitos e reconhecimento.
Mas Pê José tem problemas, sim. Quase todos relacionados a um primo famoso que reside em Centralcitá. O sujeito é uma fera como profissional, porém doidaço. Nas raras ocasiões que Pê José faltou ao trabalho, foi para ir urgentemente de avião até Centralcitá socorrer o primo.
Sente-se orgulhoso por ser o efetivo arrimo afetivo e emocional do sujeito. O camarada é tido como uma das melhores cabeças do país. Seu nome é dos mais citados nas seções de frases de efeito das revistas semanais.
Tem letras de canções em parceria com os melhores compositores. Sua coluna num grande jornal centralcitense é referência para a moçada considerada “por dentro”. Certo dia, Pê José nos informa que o primo chegará de Centralcitá para passar uns dias em Diteincitá.
Ficará no apartamento dele, lógico. Conta com nossa ajuda, pois prevê que o primo trará problemas atrás de problemas e não tem como abandonar o trabalho para acompanhá-lo o tempo todo.
Espera que possamos dividir com ele essa tarefa estranha de assistir ao primo. O tal sujeito chega à cidade. Marca um encontro num boteco para que possamos conhecê-lo. Quando chegamos, ele e o primo estão numa acalorada discussão.
O primo, um sujeito raquítico com aparência de faquir, nem responde aos nossos cumprimentos. Apenas lança sobre cada de nós um rápido olhar de desprezo e continua bebericando seu copo, evasivo como uma Monica Vitti.
Tem cabelos enormes e roupas que parecem emprestadas de uma loja de penhores. Pê José também não nos dá a menor atenção e continua a discutir com o primo célebre. Ficamos todos calados, só ouvindo o papo cabeça entre os dois.
Pê José diz ao primo que determinado livro escrito pela ex-namorada de um misógino escritor norte-americano é “muito bom”. O primo ouve aquilo de cabeça baixa; evidente que não está de acordo. Nosso amigo segue argumentando por a-mais-bê que o livro é mesmo “genial”.
De repente, o primo o interrompe para corrigir a pronúncia de uma palavra em inglês. Oh, nunca ousamos sequer imaginar que Pê José fosse capaz de um erro desses. Deve ser o nervosismo por estar na presença do primo!
Insiste em falar do livro das ex-namorada do misógino. O primo vai se enchendo, se enchendo, até que o escracha para valer:
– Deixa de ser burro, Paulinho! Você não tem a menor noção do que está falando.
Uau!
Pê José perde de vez o fio da meada. Olha aflito para nossas caras, para ver como nós, seus pupilos, reagimos. Não há como disfarçar nossa perplexidade. Acabamos de ouvir nosso ídolo ser chamado de “burro”, justamente por aquele a quem ele mais admira!
O primo levanta-se e anuncia que vai dar uma volta “para espairecer”. Pê José fica conosco amuado, com cara de perdido, ciente de que desagradou ao primo a quem tanto preza e a nós, seus admiradores.
Minutos depois volta o primo aos prantos, todo descabelado, dizendo que alguns moleques o chamaram de veado e atiraram pedras nele enquanto caminhava pela superquadra próxima.
Olhamos uns para os outros com sorrisos mordazes. Pê José parte com o primo em seu reluzente carro importado. Antes, deixa sobre a mesa uma nota graúda para que possamos pagar a conta.
No dia seguinte, confere conosco se está mantida a promessa de dividirmos com ele os cuidados com o primo. Claro! Claro! Inicia-se o revezamento. Um a um, somos escalados para acompanhar o primo de Pê José. Até que chega o meu dia D!
Ao contrário do primeiro encontro, durante o qual não nos deu atenção, o primo me recebe todo falante. Faz seguidas críticas a Diteincitá e repete várias vezes que detesta a cidade. Mas de repente muda o tom do discurso e elogia detalhes bobos da cidade.
Num estalo de criatividade, apanha um jornal velho numa lixeira, destaca a foto de um atropelado, põe ao lado a foto de uma top model seminua e me obriga a chamar um táxi. Vamos os dois ao apartamento de Pê José, onde o primo cola ambos os recortes em um pedaço de cartolina, queima as laterais, escreve uns troços com giz de cera por cima e diz que aquilo é um poema visual.
Aos poucos, quebramos nossa resistência ao primo de Pê José. Todos nós passamos a digerir sem problemas suas oscilações de humor e a nos divertir com suas opiniões contraditórias.
Basta uma inofensiva velhinha fazer um comentário pejorativo sobre seu cabelo que se assiste a um dilúvio de lágrimas, seguido de clamores dos mais desesperados. Até a esses seus chiliques idiotas passamos a admirar!
Rezamos tanto no início para que o primo fosse embora, mas agora que se aproxima a data de sua partida, lamentamos a perda de oportunidade de continuarmos na sua cola. Agitou bastante nossas cabeças durante esses dias. Sem dúvida, deixará significativas marcas em nossas vidas e lembraremos com saudade da semana que fomos suas babás.
Vamos, em grupo, nos despedir do primo no aeroporto. Levo um caderno no qual ele certa noite anotou algumas palavras desconexas. Desdenha:
– Oh, Bobó, foi muita gentileza tua me lembrar disso. Mas não era preciso. Trata-se do início de uma letra de música. Já a tenho toda montada de cabeça. Em Centralcitá porei no papel e mandarei o Carlinhos musicar.
– Por falar em cabeça, como é que está a tua?
– Igualzinha a de João Batista… na bacia de Salomé!
Passam alguns meses e os jornais noticiam o que já era esperado: o primo dá um nó na vida para jamais ser desatado. Pê José comparece ao enterro, mas não se abate e segue em sua carreira de sucesso.
Casa-se com Nina, filha de um embaixador, troca o chope pelo uísque e também troca de companheiros de copo. Agora só bebe com caciques do mais alto cacife e os encontros com os amigos chulé de redação ficam cada vez mais raros.
Reside com a mulher no setor de mansões da Asa Sul, do outro lado de Estige. Nós, os devoradores de pautas, continuamos na zoeira infernal das superquadras do lado de cá. Aprovado no concurso do Itamaraty, Pê José é indicado adido cultural num país do Oriente Médio.
Somos convidados para a festa de despedida. Tem a delicadeza de providenciar as coisitchas das quais sabe que todos nós gostamos. Deixamos sua mansão com o dia amanhecendo, completamente chapados, cientes de que serão remotas as chances de voltar a vê-lo.
Para Pê José, o futuro reserva uma carreira marcante na política exterior, enquanto que para nós a vida seguirá como antes, oferecida a crédito, sob contratos sociais que nos manterão presos aos compromissos da rotina. Nós, os devoradores de pautas, somos parte do pronuntiatio, a quinta divisão regulamentar da sociedade diteincitense, que sustenta as jornadas diárias mais abusivas.
Formamos um coro de vozes discordantes capaz de encher páginas e mais páginas todos os dias. Homens e mulheres cujas armas infalíveis são uma caneta esferográfica, um bloquinho de anotações ou, quando muito, uma máquina fotográfica.
Nossos editores, por imposição do mercado editorial, continuarão a exigir que mantenhamos as palavras acesas pela soberba do ineditismo. Estamos predestinados a navegar num mar de fatos tidos como inéditos, para, ao final de cada noite, sucumbirmos indefesos às artimanhas de Circe.
Aderval Borges se considera ex-jornalista com passagens por diversos veículos de comunicação. Tornou-se heveicultor no noroeste paulista, com o propósito de dispor de tempo para se dedicar ao que mais lhe interessa. Já trabalhou com teatro, roteiros para cinema e televisão, letras para canções e sempre escreveu.
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