O espírito butequero das redações
Por Tote Nunes
A molecada que acaba de sair do banco da faculdade pode até não acreditar, mas as redações de jornal foram muito peculiares. A do Correio Popular do fim da Norte\Sul, nos primeiros anos da década de 1990, por exemplo, era assim: os repórteres da editoria Geral eram colocados em bancadas, longas, que atravessavam toda a redação. Um ao lado do outro - feito refeitório de orfanato antigo.
Cada um com sua Olivetti (ou Remington) verde musgo, esquálida, moribunda; fita desbotada. Um maço de lauda marrom para consumo parcimonioso e um cinzeiro - quase sempre, de vidro branco, transparente, entupido de bituca e chiclete, cinza de tanto mascado.
E todo mundo fumava. Na redação. Baforadas indiferentes invadiam a cara do colega, sem cerimônia e sem reclamação. Como num acordo baseado em costumes ancestrais e convenções consolidadas por seguidas gerações, havia um silencioso pacto de não agressão. E, assim, os não fumantes – que eram raridade diga-se de passagem - simplesmente suportavam.
A fumaça começava cedo, lá pelas nove da manhã, com a chegada da primeira leva de dependentes. E ia se tornando espessa no decorrer do dia, até permanecer suspensa no teto ao cair da tarde. No final da noite, nas horas que antecediam o fechamento, havia menos gente, mas, num paradoxo, a fumaça crescia. Avalio hoje, que era a aflição pelo fechamento.
Fechamento era suplício diário. Bigorna na nuca. Momento em que a pressa tinha de ser maior que o medo de errar uma legenda, uma foto, uma informação. E assim, o consumo per capita de cigarro aumentava e a frequência entre um Holywood e outro diminuía.
Editores, diagramadores e fotógrafos mais resilientes, no entanto, encontraram uma saída honrosa para o calvário do fechamento: corriam para um buteco (na verdade, uma barraca de Eternit que se equilibrava em quatro vigas de madeira) que ficava do lado de fora, logo à direita da saída do estacionamento, nos fundos do jornal.
Frios, imperturbáveis, se postavam de pé, cotovelo no balcão, e, sem dó, declaravam guerra ao fígado. Tomavam Cinzano, Fernet, Rabo de Galo, Sangue de Boi. Entre um gole e outro de cachaça, mais um Hollywood, um Minister, um Continental. E voltavam felizes para a redação.
Isso começou a mudar com a chegada dos computadores, ali por volta de 93\94, mas o espírito butequero das redações, permaneceu ainda por alguns anos.
Sucedeu que neste mesmo ano de 94, Roberto Godoy – então diretor de redação – resolveu formar uma equipe para a cobertura da Copa do Mundo dos Estados Unidos.
Godoy pegou todo o pessoal do Esporte e juntou com gente de Geral, Cultura e Política. Disse que queria fazer um caderno de Copa especial, mas que fosse diverso e atraísse não apenas torcedores de futebol.
E eu estava no bolo. Ajudava na edição, fazia uma matéria ou outra e, dava notas aos jogadores a cada partida do Brasil. Lembrando: essa é aquela Copa que ninguém jogou nada. Pela primeira vez na história uma final de Copa terminou num 0 a 0 modorrento – um resultado perfeitamente previsível para um time cujos destaques eram Dunga – que chegou a virar símbolo do anti futebol - e Zinho – o enceradeira.
Não me pergunte de quem foi a ideia . Eu só sei que num determinado dia, acho que na estreia do Brasil contra a Rússia, no comecinho da tarde, um pessoal entra na Redação com uns tonéis – gigantes. E, dentro deles, foram colocando cervejas e mais cervejas. Daquelas long neck - uma novidade naquele tempo, já que a gente só tomava da garrafa grande, de 650 ml.
Sobre as cervejas, foram colocando baldes e mais baldes de gelo. Cobriram tudo com um plástico e uma recomendação: só pode começar a beber quando começar o jogo.
Achei que tivesse ouvido errado. “Acho que eles disseram pra começar a beber depois de fechado o Caderno”, pensava eu, em conversa comigo mesmo. “E não depois de começar o jogo. Não pode ser”, continuava pensando, solitariamente.
Não contestei. Deixei as horas correrem, fingindo que, para mim, seria indiferente ter ou não uma cervejinha gelada para ver um jogo do Brasil em Copa do Mundo. Faltando mais ou menos uma meia hora para o início da partida, alguém apaga a luz da redação. A TV já estava ligada ali na Editoria de Esportes. E conclui. “Gente. Os caras vão mesmo liberar a cerveja durante o jogo. E não serei eu quem vai resistir”, pensei.
Imediatamente me convenci que uma gelada poderia até ser bom; pra clarear as ideias, afinal, entre as minhas atribuições estava a avaliação do desempenho dos nossos craques em campo. “Pode ser até que melhore meu senso crítico”, reforcei, no meu autoconvencimento.
E assim foi. Tomei a primeira, a segunda, a terceira e, depois, parei de contar. E a cada cerveja, o jogo, para mim, ficava pior. Comecei a me irritar. E comecei a xingar o Raí; reclamar do Mauro Silva, queria trucidar o Dunga. O Brasil ganhou por 2 a 0 (com um gol do Raí, inclusive – o outro do Romário), mas para mim, foi um jogo horroroso. Um futebol de péssima qualidade.
E olha que aquela seleção tinha três zagueiros fantásticos – Márcio Santos, Aldair e Ricardo Rocha – ou seja, duzentas melhor que qualquer um dos zagueiros de hoje. Mauro Silva, Zinho e Mazinho, jogariam em qualquer time europeu de ponta hoje e no ataque havia Romário e Bebeto e Ronaldo – que ainda não era Fenômeno – no banco. Ou seja, um baita time se formos comparar com os cabeças de bagre do Diniz.
Mesmo assim, dei notas baixíssimas. Ninguém mereceu um mísero cinco. O time oscilou entre 2 e 4. E mandei pra edição. E lá foi a avaliação rumo à gráfica, junto com o Caderno. Quando cheguei em casa, já refeito do quase porre, me caiu a ficha.
“Acho que peguei pesado demais”, pensei. “Afinal, os caras ganharam. E por 2 a 0. E os gols foram legais. Não teve interferência da arbitragem. Ou seja. Errei na mão”, conclui. Fui dormir arrasado (na verdade, com um pouco de vergonha e rogando a Deus que mudasse pelo menos um pouco as notas que havia registrado).
No dia seguinte, logo cedo, fui aos outros jornais. Queria ver as notas que os colegas haviam dado (naquela época dar notas aos jogadores era uma instituição sagrada. Todos os jornais faziam isso) e, para minha surpresa, a maioria desancou o time. Muitos dos colegas avaliaram que era “obrigação” ganhar dos russos e empilharam robustas ressalvas ao desempenho do time de Parreira.
Fiquei mais aliviado. Voltei mais fortalecido para a redação, mas, por via das dúvidas, no jogo seguinte, reduzi o número de cervejas, A impaciência com o time, no entanto, permaneceu. E foi pau no time do Parreira inteiro – do Taffarel ao Romário – as notas nem perto de 5 foram se avolumando.
E foi assim no jogo seguinte. Em todos os demais. O Brasil avançou para as oitavas, com críticas rudes, algumas grosseiras. Depois foi para as quartas e mais xingamentos. E chegou às semifinais sob bordoadas. “Time sem vergonha. Isso não é futebol brasileiro. Era Dunga. Parreira acabou com o futebol brasileiro, e por aí, afora”, escrevia eu, já a essa altura, sem nenhuma cerveja na cabeça.
Só que, com isso, entrei numa sinuca. Minhas notas baixíssimas e o time de Parreira na final da Copa.
A situação se complicou de vez, quando o time foi campeão. Tive de engolir o Dunga erguendo a taça ao lado de Al Gore (o vice-presidente dos Estados Unidos, que depois seria prêmio Nobel da Paz), e dos famigerados João Havelange e Ricardo Teixeira.
Mas as minhas notas, apesar do primeiro título em um quarto de século, continuaram baixas. Não arredei pé.
Hoje – três décadas depois - vejo que não estava de todo errado. Esse time do Parreira foi o campeão mais sem graça da história do futebol brasileiro. Um campeão até meio envergonhado, acredito. Jamais poderá ser comparado à seleção de 58, 62 ou 70. Não foi nem sombra do time de 82 e é considerado muito abaixo daquele campeão em 2002, que não era lá grande coisa, apesar do Fenômeno e Rivaldo no auge.
Ou seja, com cerveja ou sem cerveja, eu não estava de todo errado.
O grave para nós, brasileiros que continuamos torcedores e amamos uma Copa do Mundo, é que o time insosso campeão de 94 é infinitamente superior à seleção de hoje, que – pasmem – ocupa neste momento (novembro de 23) – a sexta posição nas Eliminatórias Sul-Americanas para a Copa de 26.
Sorte do Diniz que as redações mudaram e eu não dou mais notas para desempenhos de jogadores. *P.S. Numa espécie de homenagem – pra dizer que não guardo mágoa - segue abaixo o time do Brasil campeão mundial nos Estados Unidos. Taffarel; Jorginho (Cafu), Aldair, Márcio Santos e Branco (Leonardo); Mauro Silva. Dunga, Mazinho e Zinho (Viola). Bebeto e Romário. O Leonardo não jogou a final, mas merece referência.
Tote Nunes é jornalista com passagens por diversas redações, como da Agência Estado, do Correio Popular, da Band Campinas. Atua hoje na Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp.
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