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Nariz de Cera

Catar alhos e dispensar bugalhos

Por Adriana Vilar de Menezes


Os bastidores de uma reportagem têm muito mais histórias - em geral, mais interessantes - que as histórias publicadas. Por conta disso, programas como o global “Profissão Repórter” são tão atraentes. Mostrar os perrengues, as dificuldades e o lado humano da equipe (com a devida edição) já se transformou em um estilo de reportagem. Bem verdade que não é novidade. Quando Truman Capote escreveu “A Sangue Frio”, em 1966, ele estava fazendo exatamente isso: mostrando os bastidores de uma investigação e de uma reportagem. Foi pioneiro no jornalismo literário e colocou todo seu talento de roteirista e escritor para se aprofundar a respeito de um crime bárbaro ocorrido nos Estados Unidos, em Kansas. Uma história bem contada que virou clássico. Era bastidor, aquilo que está para além da notícia.


Dentro da nossa realidade, basta ver o sucesso dos realities show. Todo mundo quer saber o que acontece debaixo do edredon! Aquelas cenas de erros de gravação que mostram no final do filme ou do programa de humor também despertam a curiosidade de todo mundo, porque são sempre divertidas de se ver. Pelo mesmo motivo, todos querem saber o que acontece numa redação de jornal, seja qual for o veículo. O que não falta são histórias impublicáveis.


Jornalista, em geral, tem um certo prazer por zoar com a cara do colega. Muitas vezes é pra quebrar a tristeza de alguma má notícia, ou quebrar a tensão. Apelar ao humor pode ser uma tábua de salvação. Cada jornalista tem suas dezenas ou centenas pra contar. Como não somos pagos para ser humoristas, não publicamos essas brincadeiras. Fica tudo entre nós. Até que alguém resolva contar, como fazemos aqui.




Cabeça a prêmio


Tive dificuldade de escolher uma das minhas (que fosse publicável!). Já teve caso de entrevistado que “pediu minha cabeça” ao chefe porque ouviu meu comentário o chamando de chato – na época, eu era editora do caderno de cultura do Correio Popular (Caderno C) e ele falava com a repórter pelo telefone. Por descuido meu, falei muito próxima à repórter e ele escutou do outro lado da linha. Havia uma certa unanimidade sobre a chatice dessa pessoa, mas, obviamente, ninguém publicava isso. Ao “pedir minha cabeça” à chefia ele só confirmou a fama. Não deu em nada, mas o cara se enfureceu. Estávamos em meados da década de 1990.


Antes disso, em 1991, eu era repórter da Folha de S. Paulo na sucursal de Campinas, que publicava desde 1990 o caderno regional SP Sudeste (dentro do projeto de cadernalização do jornal, que lançou cadernos regionais em diferentes regiões do Estado). Eu fui designada para fazer a cobertura da visita do então governador Orestes Quércia à Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), ligada à Secretaria de Agricultura. Ele estava fazendo a entrega de novos carros.


Como já é de praxe, a visita atraiu políticos de toda a região, curiosos, todo o efetivo da própria Cati e, claro, a imprensa em peso. Estava aquele murundum. Uma bagunça mesmo. Só pra ter uma ideia, a imprensa conseguiu chegar perto do governador no meio da multidão, com todos se acotovelando, um empurra-empurra no estilo micareta. Quando eu estava bem perto dele, com um pequeno gravador na mão (coisa moderna na época), mas também com minha ferramenta de trabalho tradicional (caneta e bloquinho), a minha caneta caiu no chão.


Fiquei na dúvida se deveria me abaixar para pegar a caneta, porque estava difícil fazer algum movimento diferente. Oras, eu poderia desprezar e continuar com o gravador. Mas quem disse que eu confio em máquinas? Resolvi me abaixar. Com muito sacrifício, eu consegui, anunciando em voz alta, me abaixar para recuperar a caneta, já em frangalhos. Quando levantei, o governador já estava se afastando. Em poucos minutos, todos se dispersaram e acabou a bagunça.


Vou de ônibus


Conformada, decidi retornar logo à redação para escrever rapidamente o que ainda estava fresco na memória. Liguei na redação para pedir que o carro retornasse para me pegar (eu estava sem fotógrafo). É bom lembrar que não havia celular naquela época. E a Folha já trabalha em esquema de motorista prestador de serviço, ou seja, era um taxista que atendia por demanda. Avisaram que, naquele momento, não tinha carro. Eu deveria esperar ou “me virar” pra retornar.


As coisas não estavam dando muito certo naquele dia. Eu já havia chegado a essa conclusão. Resolvi esperar. Por sorte (finalmente a sorte me sorriu naquele dia!), uma colega jornalista (que veio a se tornar uma grande e querida amiga) também aguardava carro. Era Araceli Avelleda, que estava lá pela rádio CBN de Campinas. Ficamos conversando enquanto aguardávamos nossos carros. Era um dia ensolarado. Para quem não conhece Campinas, a Cati fica bem distante do Centro, é meio fora do caminho. Ficamos papeando, nos conhecendo, mas ao mesmo tempo, de olho no relógio, esperando. A espera já estava longa demais, o sol já estava torrando nossos miolos (estávamos fora da Cati), quando resolvemos que não esperaríamos mais.


Decidimos juntas que pegaríamos um ônibus. Seria muito fácil, pensamos, porque vimos vários passarem em direção ao Centro. Muitos vinham da Ceasa e não estavam lotados. Atravessamos a avenida e subimos no ônibus. Araceli achou rapidamente um lugar para sentar. Eu também avistei um lugar. Era um acento ao lado da janela, outra pessoa ocupava a vaga ao lado, do corredor, com uma caixa de madeira aos seus pés. Era um senhorzinho. Pedi licença para conseguir me sentar no lugar da janela. Sem querer, pisei na caixa de madeira que ele tinha aos seus pés. A caixa quebrou e aquele monte de alho que tinha dentro dela começou a se espalhar pelo corredor do ônibus. Só percebi alguns segundos depois, porque primeiro eu me ajeitei no banco da janela.


Alhos e bugalhos


Quando olhei para o lado e vi o senhorzinho se levantando para catar alhos que não paravam de correr no chão na velocidade que o ônibus seguia pela avenida Brasil, a Araceli já estava com a cabeça baixa gargalhando e eu me levantando para ajudar a pegar. O motorista não reduziu a velocidade, não foi nada solidário, em compensação, os passageiros do ônibus se levantaram para ajudar. De repente, estavam quase todos catando os alhos. Eu não parava de me desculpar com o senhorzinho, enquanto ele fazia o mesmo, me pedia desculpas. De repente, passou o ponto que eu desceria. Puxei a cordinha do ônibus para avisar que eu iria descer, e desci. Saí andando pela calçada e dando muita risada, balançando a cabeça sem acreditar na cena inusitada que tinha acabado de acontecer.


No meu próximo encontro com a Araceli, estávamos em uma sala da Prefeitura de Campinas aguardando juntas (mais uma vez!) um entrevistado, quando não conseguíamos parar de dar risada. Parecíamos duas meninas da 5ª série, só gargalhávamos, e não conseguíamos completar uma frase inteira. O maestro Benito Juarez sentou-se em um sofá próximo, cumprimentamos ele e voltamos a gargalhar. Depois fiquei envergonhada quando o encontrei outras vezes, mas eu não conseguia parar de rir quando lembrava da cena de catar alhos.


Como eu disse, Araceli é hoje uma grande e querida amiga. Vinte anos depois do nosso encontro na Cati e no ônibus, nós trabalhamos juntas no Sindivarejista de Campinas e região, em 2010, onde fiquei até 2015, enquanto Araceli de lá seguiu para a assessoria de imprensa da Sanasa. Tive a sorte de conhecer e conviver profissionalmente com ela. Portanto, não posso dizer que aquele dia, quando minha caneta caiu na frente do governador e eu fiz uma matéria de registro da sua visita (que já nem me lembro se foi publicada no abre da página com destaque ou não) foi um dia de azar. Muito pelo contrário, foi um dia de sorte. Muito além da notícia, o que aconteceu nos bastidores me marcou muito mais e foi mais interessante que a notícia em si. Na real, naquele dia nós catamos alhos; e metaforicamente continuamos nessa vida de jornalista catando os alhos e dispensando os bugalhos.


Adriana Vilar de Menezes é jornalista da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp (Jornal da Unicamp); mestre em Divulgação Científica e Cultural (Unicamp).


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