Vômito, descarrego e outras histórias
Por Sara Silva
Mais uma vez, ligando a porra do despertador pra acordar numa hora que não é a minha, pra uma vida sendo vivida de um vômito, um jato de raiva que me move pra fora. Um soco pra não me faltar o ar.
Hugo Carvana na pele de Waldomiro Pena, um jornalista boêmio na série Plantão de Polícia
É quase uma hora e preciso acordar às sete; como se realmente acreditasse, como se quisesse, como se fosse possível, como um robô, alguém que levanta da cama sem pensar, pra fazer o que não quer, pra mais um dia de tédio, de um faz de conta que todo mundo encena.
Antes, vou meditar. Tá, quer dizer, tentar ouvir algumas palavras que possam fazer sentido e evitem que meu cérebro se derreta ou que eu pule da janela. Não seria prudente. Onde eu estou não dá nem pra me matar. Trágico.
A gente não fica sabendo da quantidade de suicídios. A imprensa não publica. Pra não dar ideia. Como se precisasse.
Passei anos da minha vida de jornalista numa atividade sórdida. Todos os dias, ensolarados ou cinzas, eu chegava na redação e fazia uma atividade chamada “ronda”. Começou numa época sem celular. Ligava para as delegacias de plantão, Polícia Militar, Bombeiros, Polícia Federal, o caralho a quatro, até chegar no IML.
E fazia uma pergunta: “alguma novidade por aí?” Tinha policial que ficava puto. Com razão. “O que você chama de novidade?” . Ou simplesmente dizia que não tinha nada quando a madrugada tinha sido marcada por chacinas, o escambau.
Aí eu é que ficava puta quando descobria a porra toda mais tarde e, claro, meu chefe ficava puto. Como por telefone a coisa toda era “embaçada” porque tinha que contar com a boa vontade e tempo da galera em final de plantão, teve uma época que eu ia todas as manhãs ler boletim de ocorrência.
Você já passou suas manhãs em delegacias lendo as desgraças muito toscamente escritas à máquina de escrever em umas folhas amarelas? (Como será isso hoje?) Eu já. Mas isso não era o pior. O pior era ouvir os relatos da galera do IML. Se bem que os caras do IML eram os mais bem-humorados, os mais parceiros, convidavam a gente pra tomar café e contavam tudo.
Eu ficava sabendo dos suicídios por eles. Eu não perguntava, porque não precisava e obviamente não queria saber, mas às vezes rolavam uns detalhes. Até que um dia perguntei pra um PM que trabalhava no IML de uma cidade pequena por que tinha tanto suicídio naquele lugar.
Ele respondeu: “isso aqui é o vale das sombras”. Arrepiei. “Dizem que tinha um cemitério muito antigo aqui, não sei no que você acredita, mas ...”. Definitivamente, não era um jeito bom de começar meus dias. Acho que era por isso que eu esticava minhas noites, pra demorar pra dormir, pra demorar pra manhã chegar.
Mas amanhã, não. Amanhã vou vomitar. Vou dormir pouco, mas vou vomitar um vislumbre de um novo dia.
Sara Silva é jornalista, estudante de psicanálise e cronista errática (ou aleatória)
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