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Monólogos Ácidos

Atualizado: 23 de jun. de 2022

Um conto sobre política

Parte III

Por Marcel Cheida



Roque e Jacinto eram bastante populares na cidade. Elegeram-se vereadores para um segundo mandato. Ambos vieram da zona rural, de famílias de sitiantes. Fizeram o ginásio e pararam por aí. Sabiam ler e escrever, sem grande sofisticação. Amigos de idades próximas, cultivaram a carreira política orientados pela amizade, pelos tais valores morais familiares.


Disso resultaram os apelidos: Roque Pomada e Zeca Tragadinha.


Pomada porque Roque sempre tentava finalizar uma discussão com: “vocês todos estão com razão”. Evitava, a todo custo, concordar com um dos colegas em debate. E assim afastava atrito com algum deles. Raramente assumia uma posição para validar argumentos. Sempre decidia na última hora, geralmente em favor dos vitoriosos na disputa política.


Tragadinha porque pedia, na roda dos amigos fumantes, uma “tragadinha”, pois raramente era visto com um maço de cigarros no bolso. E fumar era um ato de afirmação social, identitário.


Por exemplo: “esses comunistas financiados por Moscou são contra o Brasil”. Ou então, “todos vagabundos”.

Zózimo mantinha boa amizade com ambos. Hercílio tinha mais simpatia por Roque, que sempre dizia apoiá-lo. E isso era vital para as pretensões de poder numa Câmara cujas entranhas abrigava o que consideravam o pior da sociedade local.


Tragadinha era mais simpático a Zózimo , pois era visível e previsível nas decisões políticas. E sabia pedir como nenhum outro vereador que conhecia. Chegou a ilustrar um pedido a um grupo de eleitores com o gesto de passar a manteiga no pão. “E eu preciso de manteiga no meu pão”, dizia ele quando usava a figura de linguagem para conseguir recurso para a campanha eleitoral. Outro apelido nasceu ali: Manteiguinha. Era, portanto, o vereador com dois apelidos: Tragadinha e Manteiguinha.


Zózimo evitava julgar os colegas. Hercílio preferia apontar alguns clichês amparados em um saber sacrossanto. Por exemplo: “esses comunistas financiados por Moscou são contra o Brasil”. Ou então, “todos vagabundos”. Eram as frases feitas preferidas. Tais afirmações careciam de qualquer fundamento, evidência ou prova. Eram apenas insultos. Os poucos filiados ao Partido Comunista estavam na clandestinidade ou em partidos legalizados, com perfil socialista ou democrata-social. Desde que o marechal Eurico Gaspar Dutra extinguiu, em 1946, o PCB e determinou a cassação dos mandatos de 15 deputados eleitos e um senador, Luís Carlos Prestes, que tinha sido o segundo candidato mais votado nas eleições de dezembro de 1945, os comunistas perdiam a presença no cenário político.


O embate acentuava as divisões entre os vereadores. Mesmo os “deixa disso”, que tentavam intervir para aliviar as tensões, torciam para um dos adversários políticos mais populares na cidade. Roque Pomada, por exemplo, abordou Hercílio e assentou a mão direita sobre o ombro do grandalhão. Pediu para se acalmar, pois era hora de começar a votação dos projetos de lei.


A cusparada ficou no ar, com uma nuvem de perdigoto no entorno.

Um dos vereadores, Jacinto Filho, irmão do prefeito Esperidião Jacinto, geralmente contido, levantou-se da cadeira e apontava o dedo para Zózimo. Dizia aos quase berros: “Vossa Excelência é um estorvo para a cidade. Faz de tudo para impedir que meu irmão ... o prefeito Jacinto faça uma boa administração.”


Guilherme ouvia os insultos e se exasperava. O sentimento era de cólera quando se dirigiu a Jacinto Filho para cuspir no seu rosto. Quase conseguiu, pois Roque Pomada havia percebido os movimentos do militante e conseguiu segurá-lo quase próximo de Jacinto Filho. A cusparada ficou no ar, com uma nuvem de perdigoto no entorno.

Foi então que o presidente da Câmara, Umberto, apelidado nos bastidores como “Peido Flutuante”, acionou a campainha para tentar interromper a dinâmica do conflito recheado de insultos. O apelido de Umberto resulta da combinação do tipo físico, magro e alto, das passadas largas e lentas, e de um característico mau cheiro que o acompanhava em certas horas do dia.


Somente depois de ter sido conquistado por Neusa, cabo eleitoral que assumiu o posto de amante, é que Umberto adotou o hábito de se banhar com uma colônia barata e, assim, aliviar o odor.


O presidente da sessão apertava o botão da campainha insistentemente. Até que os vereadores baixaram o tom de voz e voltaram a se sentar.


...retirou o objeto do bolso direito do paletó e o jogou em direção de Hercílio: “para uma cavalgadura, nada mais que um presente assertivo”.

O único desobediente foi Jacinto Filho, que caminhou em direção a Zózimo e tentou estapeá-lo. Tragadinha, cuja cadeira ficava ao lado, se levantou para impedir, e levou o tapa no braço esquerdo. Os colegas do “deixa disso” intervieram e ajudaram a separá-los. Novamente a sonoridade da campainha de Umberto preenchia o ambiente.


O presidente tomou a palavra e anunciou a suspensão da sessão para cumprir o intervalo, e na sequência iria submeter os projetos de lei à discussão e votação.

No início da segunda parte da sessão, Zózimo pediu a palavra de ordem. Mas, em vez de questionar algum procedimento formal do presidente, retirou o objeto do bolso direito do paletó e o jogou em direção de Hercílio: “para uma cavalgadura, nada mais que um presente assertivo”.


A peça caiu embaixo da mesa de Hercílio. O barulho era de metal. Zózimo a jogou frente aos pés do adversário, sempre calçados com botas. Era uma ferradura com rampão. Ele a encomendara com um ferreiro da cidade, especializado em ferrar cascos de cavalos e burros.


“Aí está sua ferradura, Vossa Excelência acostumada a capim, agora pode trotar aqui nesse chão liso sem problema, pois o rampão não deixa escorregar.” Parecia aliviado naquele momento, superara a calça caída. E completou: “posso distribuir outras ferraduras, pois aqui vários demonstram que consomem capim em excesso, o que gera efeitos colaterais gravíssimos ao cérebro”.


Umberto acionou a campainha. Hercílio ficou hesitante, mas tirou o punhal e foi em direção do adversário. A turma do “deixa disso” mais uma vez interveio. Guilherme urrava de alegria. Assunta xingava Zózimo de filho da puta. Jacinto Filho gesticulava e gritava insultos. Roque Pomada pedia para se acalmarem. Tragadinha segurava quem tentava agredir o colega com as mãos.


Hercílio vociferava e apontava o punhal em direção a Zózimo, que sorria, nervoso, pois não desprezava a possibilidade de ser alvo da agressão.


Por uns vinte minutos, tudo se acalmou. Umberto, na presidência, conseguiu levar a sessão e a votação do projeto de investimento na rede d’água, que foi aprovado com maioria dos votos. Terminada a sessão, os vereadores se encontraram na sala de reuniões. Abraços e tapinhas nas costas sintetizavam o momento de superação das agressões. Menos entre os dois maiores adversários, que preferiram deixar a Câmara para tentarem dormir naquela noite.


Nem todos esses detalhes estavam descritos nas atas da sessão. Muito foi apurado entre alguns velhos e aposentados servidores da Câmara. O jornalista conversou mais tempo com Jair, que guardava informações e histórias da Casa e dos ex-vereadores. Depois de ler e ouvir os depoimentos, a elaboração da reportagem exigiria a checagem de alguns fatos e falas. E assim foi em frente, ouvindo as poucas testemunhas de um tempo no qual capim e ferradura tinham significados na política da cidade.


Na edição do jornal daquela semana, a manchete anunciava a reportagem sobre aquela sessão legislativa: Capim e ferradura enobrecem vereadores.



Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).


Ilustração: Retrato de Niccolò Machiavelli, Santi di Tito

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