Um conto sobre política
Parte II
Por Marcel Cheida
Os conflitos e debates na Câmara de Vereadores eram apimentados por rumores diversos, durante a semana. O imaginário era solto. Hercílio se aproveitava disso, ao alimentar os boatos contra os adversários. Em especial Zózimo, a quem sentia certo desprezo, pois nem sempre conseguia acompanhar os argumentos preparados pelo adversário. Como quando ambos discutiram sobre como o comunismo se espalhava mesmo durante a Guerra Fria.
Zózimo dizia que a propaganda norte-americana escondia muito do que acontecia na América Latina. A pobreza, a miséria, a desigualdade, um Judiciário exclusivo para a preservação dos direitos das classes mais abastadas. Hercílio afirmava a presença de comunistas na América Latina, ateus e coletivistas que rejeitavam o trabalho honroso de quem queria a liberdade para empreender.
Bem, tais diferenças enraizadas ao longo do século XX dinamitavam qualquer possibilidade de entendimento entre os dois. Mas, Hercílio escorregou. Afirmou, em certo momento do debate, que não fosse Hitler os soviéticos teriam invadido a Europa. Pois, Moscou era muito próxima de Berlim. Um pulinho.
Meus bois são bem tratados e não comem capim comunista.
E tentou introduzir o assunto nas disputas locais. Disse que não fosse o prefeito Esperidião Jacinto, da UDN, o comunismo teria tomado conta da cidade, feito das jovens puras mulheres párias, dos jovens nada mais que instrumentos da nociva ideologia da igualdade. Faltava fé para esse mundo infernal, demoníaco, segundo Hercílio.
Zózimo não se conteve. Respondeu:
-- Como, excelência, Berlim fica perto de Moscou? O sr., por acaso, conhece geografia?
-- É claro que eu conheço geologia, nobre vereador. Sou pecuarista e sei a diferença entre capim gordura, o mombaça, o pangola, a brachiária, o capim-sudão, o elefante. E sei que são diferentes da alface. Meus bois são bem tratados e não comem capim comunista.
-- Mas, capim comunista? Qual seria, nobre vereador pecuarista?
-- Ora, Vossa Excelência não sabe? O capim tiririca-do-brejo. Onde planta, destrói tudo em volta.
-- Nobre vereador Hercílio, desculpe-me, mas vossa senhoria deve estar muito nutrida por esses tipos de vegetais geológicos de que tanto fala. Listou vários deles, mas não explicou como os prepara para se alimentar. Nem como o nutrido capim pangola o leva à diarreia cerebral.
-- Senhor vereador comunista, o sr. deve saber que capim não tem nada a ver com diarreia. E nem com o cérebro. Pois, se fosse importante para o cérebro, o gado seria inteligente. E gado é inteligente só para obedecer à gente, dar leite e carne para o churrasco. Vossa senhoria não entende nada de pecuária e muito menos de geologia.
O público se deliciava com tanta erudição mateira. Guilherme soltou a voz para Hercílio:
-- Vereador, vou levar um bom prato de capim para vossa apreciar e nutrir esse cérebro ruminante.
Hercílio nem ouviu direito, mas, Assunta, sim.
-- Cala a boca moleque. Respeita o vereador. Não é porque você come capim que ele vai servir também.
Guilherme desprezou Assunta e reforçou o ataque a Hercílio:
-- O senhor tem de usar antolho e arreio, além bridão e freio, sem falar da barrigueira. Vá comer capim assim lá no roçado.
Hercílio ouviu dessa vez. Ficou fulo. Desceu da tribuna onde discursava e foi em direção a Guilherme. Zózimo se pôs entre ambos para evitar o pior. Hercílio tirou um punhal que costumava usar na cinta, pois a casa proibia o uso de armas de fogo.
Aí, outros vereadores intercederam. Fizeram um esforço danado para segurar Hercílio, mais de 1,80 m e 95 quilos. Ele suava e empapava camisa, calça e paletó.
Guilherme urrava; Assunta esgoelava.
O presidente da sessão, o comedido e lambuzado Umberto, vereador há cinco mandatos, pedia, ao microfone e fora dele, para que os colegas se assentassem, se acalmassem, se voltassem para os seus lugares.
Aliás, Umberto, certa vez, levou uns tapas de Hercílio, porque teria comentado que o pecuarista geólogo vendia carne de cavalo velho em vez de carne de boi para alguns açougues. Soube que em determinada época do ano, de baixa produção leiteira e de carne, optava por abater cavalos e mulas para fornecer aos açougues.
Entre famílias mais pobres da cidade, havia quem acreditava nos poderes milagrosos da carne de cavalo. Diziam que era boa para fortalecer quem estava acometido de erisipela, de mau olhado, de intestino preso, de constipação, de tuberculose, enfim.
Naquela sessão quando Zózimo começou a perder a calça, contudo, a discussão era outra. O financiamento da rede de esgoto era o assunto. Enquanto Hercílio defendia o projeto apresentado pelo amigo prefeito, Zózimo buscava apontar os privilégios do projeto, que, segundo ele, iria beneficiar apenas áreas onde a classe média habitava. Enquanto isso, a região do Barracão, bairro de famílias pobres, com cerca de 500 habitantes, nunca era contemplado com o saneamento.
-- Vergonha. Essa administração é uma vergonha. A gente humilde, pobre, desconhece a cidadania. Está esquecida, empurrada nos barrancos onde a terra pode ser ocupada sem que tenham de pagar aluguel.
Hercílio pediu aparte:
-- Vossa Excelência não diz a verdade. O atual governo leva comida, leite e mantimentos diversos para aquelas famílias. E pessoas do bem de nossa rica cidade sempre se dedicaram à filantropia para ajudar os mais pobres.
Zózimo começou a perceber que a calça arriava. O cordão não segurava mais. E nesse momento entre pegar o microfone da tribuna e segurar a calça, se perdeu.
O público acompanhava o detalhe. E gargalhava.
E a calça caia.
Hercílio, distante uns três metros de Zózimo, apontou o dedo para o adversário e comentou:
- Além de comunista, não sabe proteger as partes pudendas.
Zózimo começou a ficar envergonhado. Avermelhou-se. Mais um ponto para Hercílio zombar:
- Agora, sim, o sr. mostra a verdadeira cor que revela o que o senhor é.
Os colegas intervieram. Dois deles, Roque e Jacinto, foram acudir a Zózimo. Roque ajudou a levantar a calça, enquanto Jacinto pegava o colega pelos braços para levá-lo aos bastidores, à sala de reunião dos vereadores.
Zózimo estava perplexo, hesitante, inseguro. Mas, a raiva era a munição farta para responder a tudo que aconteceu no plenário. Foi até um armário, onde guardava objetos pessoais e tirou de uma pequena maleta um objeto, que os colegas não identificaram naquele momento.
Jacinto percebeu Zózimo enfiar algo no largo bolso do paletó. E seguir à porta de entrada para o plenário. Roque pensou: “ele vai atirar em Hercílio”.
E seguiu atrás de Zózimo, na tentativa de evitar o pior.
Continua na próxima edição da URRO.
Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).
Ilustração: Retrato de Niccolò Machiavelli, Santi di Tito
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