Um conto sobre política
Parte I
Por Marcel Cheida
Nos porões, abaixo da garagem, o odor da poeira centenária e do cobre oxidado recebia a visita com o anúncio de uma tortura aos sentidos. Ali, em um pretenso labirinto mal desenhado, o caminhar era quase penoso. Até as almas sentiam um embriagado cheiro de ossos empapelados lançados ao tempo.
Jair seguia em frente, à vontade com o cenário. Parecia uma criança pisoteando um gramado macio. Virou-se e disse:
- É nesse quarto que devem estar os documentos. Vou abrir.
Pegou a chave no bolso da folgada calça bege e a levou à fechadura. Virou, girou. A porta abriu ao ser empurrada com a calma de séculos ou anos nos quais Jair trabalhava naquele prédio. Ah, prédio da Câmara Municipal. Ao ser aberta, a porta não rangeu.
Distante vários quarteirões da monumentosa Prefeitura, a Câmara era um depósito da memória da cidade. Ali, os documentos e o odor da história política da cidade se combinavam em matreiros jogos de esconde e esconde. Poucos se aventuravam em imergir naqueles porões que iam se distanciando, a cada ano, do tempo presente.
-- Aqui, nessa prateleira, estão os documentos daquele período.
Jair apontava a parte superior de uma estrutura de madeira, dividida em nichos nos quais pilhas de pastas enganavam o olhar. Pareciam organizadas. Era só começar a manuseá-las para notar a dificuldade que seria identificar as atas das sessões legislativas procuradas.
Enquanto parte dos jovens desejavam deixar o lugar, os moradores faziam do dia a dia o cenário das afirmações e confirmações de crenças e clichês em torno de tabus e ideais nostálgicos.
O jornalista que perseguia os documentos queria encontrar a ata da sessão na qual dois vereadores brigaram, se estapearam. Foi um episódio que se perdeu na memória política da cidade. Numa conversa de bar, mais de 60 anos depois, alguém citou a história. Dois vereadores, na década de 1950, eram adversários figadais, intestinais. E foram protagonistas de uma disputa eleitoral que resultou numa briga logo abafada pelos colegas.
A cidade era ...não quero usar o termo bucólica, porque não era. Era chata. Tediosa. Cheia de rumores e fofocas.
A Câmara, um dos pontos fora da curva da rotina quase bolorenta. Enquanto parte dos jovens desejava deixar o lugar, os moradores faziam do dia a dia o cenário das afirmações e confirmações de crenças e clichês em torno de tabus e ideais nostálgicos. Aliás, a pauta geral da conversa de esquina era o passado empolgante.
-- Sabe quando aconteceu? ... e a conversa era engatada por fragmentos coletivos de memória.
O que havia acontecido há anos ficou na juventude idílica consumida pelos anos da maturidade carcomida pelo trabalho, pelo casamento, pela rotina, pelo tédio.
Como diziam: “enricou com gado e fraude na declaração de imposto de renda.”
Naquela semana, há tanto tempo, a notícia de que os vereadores se enfrentaram tornou alguns dias menos ruins. Mais estimulantes nas conversas permeadas pelo eco modulado dos rumores. Mas, havia evidente receio de alguém policiar a conversa. Aí, contar para os vereadores. Um deles, Hercílio, de família longeva na política local. Fazendeiro, um dos mais endinheirados. Como diziam: “enricou com gado e fraude na declaração de imposto de renda.”
O outro, “seo” Zózimo, comerciante bastante popular. Formou os filhos, todos professores, com armazém de secos e molhados. Nele, aos finais de tarde, muitos se encontravam para apreciar as batidas diversas, de cachaça local e de variedade de frutas. De caju, morango, uva, goiaba, pêssego, mais as cachaças curtidas na madeira, do bálsamo ao jatobá.
Hercílio e Zózimo viraram referências nas disputas políticas e eleitorais. O primeiro, forjado sobre o cavalo, na pega do gado, na administração da fazenda da família. O segundo, filho de pais semialfabetizados, cuja mãe dizia todos os dias que estudar era fundamental. Zózimo chegou até o antigo ginásio. Mas, fez questão dos filhos terem a faculdade. Ercílio começou a Faculdade de Veterinária, mas interrompeu quando chegou no terceiro ano. Parou. Voltou ao gado. E assegurou para os filhos as mesadas para poderem cursar as faculdades de Medicina e Agronomia. Três filhos, dois agrônomos e uma médica.
O plenário
Os vereadores se reuniam uma vez por semana na Câmara Municipal. O prédio, apesar de antigo, bem cuidado, abrigava o plenário onde cabiam 11 vereadores, mais 50 cadeiras para o público. Era quase proporcional ao tamanho da cidade. Havia oito servidores que cuidavam a administração e da burocracia. E mais três para a limpeza, manutenção do prédio (na verdade, uma casa térrea adaptada), abertura e fechamento das portas.
Os cidadãos assistiam às sessões somente quando havia algum projeto de elevada contradição, estimulador dos debates e conflitos. Raramente lotavam o plenário. Porém, alguns cidadãos frequentavam as sessões rotineiramente. Como Guilherme e dona Assunta.
Guilherme, cerca de 35 anos, com apenas o ensino ginasial, era um estranho autodidata, lia e entendia idiomas como o inglês, o francês e até o russo. Claro, sem a consistência gramatical e fonética exigida para uma conversação mais exigente. Ele fazia bicos, entregava jornais, prestava serviços em velórios e enterros, ajudava organizar as procissões. Era um colecionador de revistas em quadrinho, adquiridas com todo o dinheiro que ganhava. Ao frequentar as sessões legislativas, Guilherme dizia que se sentia um cidadão, alguém que poderia influenciar a vida da cidade.
Dona Assunta era a benzedeira bastante popular. Dizia que tinha a missão de benzer os vereadores para que soubessem o que fazer, o que votar e como votar para o benefício de quem a buscava. Boa parte da cidade passou pela casa e por aquelas mãos protetivas. A maioria, na infância, para curar dores de barriga, peito tomado pela gripe, agitação e choro inexplicáveis. Os adultos, para curar lombriga, dores de cabeça, de pernas e costas.
Os católicos mais fervorosos se mantinham à distância, porém. Acreditavam que havia algo de bruxaria, um tom herético nas rezas quase secretas de dona Assunta.
Guilherme era cabo eleitoral de Zózimo. Dona Assunta apoiava Hercílio.
No plenário, sentavam-se próximos. Às vezes, discutiam. Às vezes, se congratulavam.
Naquela sessão buscada pelo jornalista nos documentos e atas, Guilherme e dona Assunta quase se pegaram. Durante a sessão, o bate-boca entre Hercílio e Zózimo azedou os olhares entre ambos. Ele se agitava na cadeira, enquanto Assunta se erguia e tentava avançar o corpo. As mãos milagrosas, agora, se travestiam de punhos agressivos.
Antes da quase briga, é necessário informar o seguinte: a cidade havia recebido uma verba do governo estadual para a expansão do sistema de abastecimento de água. O prefeito encaminhou o projeto de lei para os vereadores votarem e aprovarem a ampliação da rede para três pequenos bairros, os quais eram chamados de vilas pelos moradores.
Ao anunciar o projeto, o prefeito, do mesmo partido de Hercílio, anunciou quais seriam os bairros beneficiados. Ao saber da decisão, Zózimo se opôs, em tom de advertência apontou a intenção do prefeito: “iria beneficiar as famílias e os terrenos onde Hercílio mantinha casas de aluguel e outras propriedades.”
Na sessão, ao denunciar o pretenso conluio entre o prefeito e Hercílio, Zózimo ameaçou ingressar em juízo para denunciar o favorecimento. No plenário, Guilherme vociferava.
Na sessão, ao denunciar o pretenso conluio entre o prefeito e Hercílio, Zózimo ameaçou ingressar em juízo para denunciar o favorecimento. No plenário, Guilherme vociferava.
O amor havia vencido a militância, a doutrina. E o ex-comunista foi se transformando num pragmático, num crítico 360º, método adotado para expressar a angústia de tantos cidadãos que acompanhavam o jornal.
As sessões só eram conhecidas pela população exatamente porque os poucos cidadãos que as frequentavam divulgavam o que entendiam ter acontecido. Os dois jornais semanais da cidade nem sempre se dedicavam à pauta legislativa. Um deles apoiava o prefeito. O outro seguia a corrente, em especial a dos leitores que se manifestavam contra ou a favor. O diretor, redator e impressor, sr. Ulisses, foi militante do Pecezão durante 20 anos, mas abandonou o partido depois que, tardiamente, se casou. Um casamento tecido num lençol para cobrir e esquecer os anos de clandestinidade e de perseguição política. O amor havia vencido a militância, a doutrina. E o ex-comunista foi se transformando num pragmático, num crítico 360º, método adotado para expressar a angústia de tantos cidadãos que acompanhavam o jornal. Sem ter perdido a ternura, como sempre realçava.
E por falar em ternura, Zózimo foi personagem nessa sessão. Sujeito simples, que chegava ao simplório pela vestimenta, não se preocupava com algo que hoje em dia é valor excepcional, a tal de moda. O paletó rústico e a calça esgarçada, cuja bainha apoiava o salto do sapato, formavam um modesto figurino que pouco chamava a atenção na cidade. Mesmo porque, a maioria se vestia de modo semelhante, quase igual, ainda mais quando nas missas e velórios.
Naquela sessão, Zózimo teve a infelicidade de usar como cinto da calça uma corda. Sim, uma corda que havia ganho de um neto, com pontas afinadas por couro trabalhado. Havia uma folga na amarração na cintura. A toda hora, Zózimo tinha de levantar a vestimenta e ajustá-la com a corda, ou melhor, o cinto.
Foi Assunta que percebeu: na medida em que aumentava o tom da crítica à Hercílio e ao projeto, Zózimo não percebia que o cinto ficava frouxo e a calça ia perdendo a cintura.
Continua na próxima edição da URRO.
Marcel J. Cheida, jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas. Diretor da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abejor).
Ilustração: Retrato de Niccolò Machiavelli, Santi di Tito
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