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Monólogos Ácidos

  • Foto do escritor: URRO
    URRO
  • 1 de abr.
  • 6 min de leitura

O neomercantilismo do império digital

Por Marcel Cheida



É a era das big techs. Apesar de somarem valor econômico menor do que as big oil e das big money, as organizações cujo capital é a tecnologia da informação são mais poderosas no mundo contemporâneo. São elas que, de fato, desafiam a soberania dos estados nacionais. Google, X (twitter), Amazon, Meta (facebook, instagram), entre outras de menor influência, tomaram as rédeas do capitalismo da informação em nível planetário, e deixaram para trás as transnacionais ou as multinacionais, fenômenos do capitalismo da segunda metade do século 20.


Ao considerar apenas os valores dos ativos ou o valor de mercado, as big techs são mais baratas. As quatro maiores elencadas acima, valem em torno de US$ 7 trilhões, enquanto que somente uma das grandes investidoras financeiras, big Money, a Black Rock soma US$ 11,5 trilhões.


As cinco maiores empresas petrolíferas, lideradas pela Saudi Aramco, somam algo perto de US$ 4 trilhões, porém, a articulação entre as outras empresas petrolíferas, refinadoras, transportadoras, o valor supera as big techs.


Somente os números, contudo, não desenham o diagnóstico do poder das empresas, pois as organizações especialistas na tecnologia digital detêm o domínio da informação. Ou seja, o seu patrimônio não se restringe à riqueza material, mas se amplifica com o capital da informação ou o capital simbólico que manuseiam.


O embate das empresas de tecnologia, as maiores sediadas no Estados Unidos, com o Supremo Tribunal Federal evidencia o poder sobre a informação em meio à sociedade brasileira. A tecnologia digital é uma ferramenta de condicionamento comportamental, cujo planejamento sobre os tais conteúdos visam o condicionamento e a adesão permanente da audiência.


Manuel Castells, na trilogia clássica de sua autoria, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, no volume 3, Fim de Milênio, relata e analisa as profundas transformações ao longo da segunda metade do século 20, com o fim da União Soviética e a derrocada do modelo socialista. Ele crava em cima das características das rupturas sócio-políticas: “As sociedades são (e sempre serão) forjadas por agentes sociais, mobilizados em torno de interesses, ideias e valores em um processo aberto e conflitante. A mudança social e política é o elemento que, em última análise, traça o destino e a estrutura das sociedades.”


A reflexão de Castells sintetiza o cenário de aceleração das transformações sociais desde a Segunda Guerra Mundial, de modo a apontar como a história faz sentido na medida em que os recursos limitados impõem condicionantes ideológicos e políticos. A discussão se dá em torno do fim da União Soviética, mas serve de referência para apontar outros caminhos nos quais o Estado enfrenta poderes oriundos de interesses e valores pouco dimensionados por seus agentes governamentais. Ou seja, os políticos e a burocracia estatal são lentos em identificar e aprender os movimentos dos grupos de poder econômico e tecnológico que estão revestidos de outra embalagem ideológica. Agora, o controle dos sistemas de informação e o emprego da velocidade na produção e disseminação de mensagens superam o desacelerado processo administrativo e político do estado.


É o caso da expansão aceleradíssima as big techs, as quais em menos de duas décadas criaram e desenvolveram ferramentas informacionais (as redes sociais, p. ex.) destinadas a mudar comportamentos de modo massivo.


Vários casos exemplificam esse poder. As eleições de governantes à extrema-direita, como Erdogan, Trump, Bolsonaro, Modi (Índia), bem como a campanha pelo Brexit, na Inglaterra, cujos resultados remodelaram a percepção sobre a democracia e os atributos da vontade popular. A internet é uma estrutura de sustentação das redes sociais, cujo atributo maior é criar a ilusão do real na modalidade virtual. O conteúdo ou mensagem é produzido para ser curto, breve, numa alimentação em fluxo contínuo e exasperante. O cibernauta se torna submisso ou refém da fugacidade informativa, que o mantém conectado e determinado a conduzir o volume de informações pelos ditames virtuais e não pelo mundo fora das telas. Não dá tempo para internalizar e refletir sobre as mensagens. Essa é a estratégia dos controladores dos sistemas digitais.


Ao alimentar, manusear e manipular o arcabouço das redes, dando-lhes os condicionantes do fluxo temporal e a limitação espacial, as big techs influenciam e conduzem processos políticos e sociais. Assim, estimulam o sentimento de rejeição ao sistema estatal e social com suas instituições analógicas, consolidadas por décadas de poder no mundo fora das telas.

Numa rede viralizante formada internamente no estado nacional, as big techs passam a determinar os meios e a linguagem adotada para as trocas aceleradas de mensagens fugazes, as quais são oferecidas por milhões de produtores “de conteúdo”, cujo custo do serviço é quase zero para as grandes organizações tecnológicas.


Há afronta e desafio ao poder do Estado, dos governos, portanto. A figura da soberania do Estado é abalada pela combinação dos recursos infindáveis, adotados sem qualquer condicionante das leis do país alvo das redes, movidos pelos valores digitais e pela repulsa aos valores do sistema político, e por uma ideologia de desconstrução das ideologias clássicas que moldam os partidos e governos eleitos. As big techs afirmam a tal liberdade plena de expressão para, ancoradas nos Estados Unidos, montar e acionar um aparato formidável nos diversos países, sem qualquer preocupação com as leis locais.


O conflito de interesse entre Elon Musk, a Starlink, e o Supremo Tribunal Federal exemplifica esse cenário. Musk adotou o modelo de liberdade plena, absoluta, numa estratégia de permissividade em torno dos conteúdos postados no X (ex-twitter), plataforma controlada por ele. Não respondeu a notificações judiciais, não identificou advogado para responder legalmente pela empresa e confrontou as decisões do Supremo.


O ministro Alexandre de Moraes chegou a afirmar, na aula magna na Fundação Getúlio Vargas, em 11 de março: “Por enquanto nós e os demais países conseguimos manter a nossa soberania nacional e a nossa jurisdição, porque as big techs necessitam das nossas antenas de comunicação. Não é por outros motivos que uma das redes sociais tem como sócio alguém que tem outra empresa chamada Starlink e que pretende colocar satélites de baixa órbita no mundo todo para não precisar das antenas de nenhum país”.


A soberania é um valor político conquistado pelos estados nacionais desde a Modernidade. Desenhou as relações de poder, de modo a fortalecer a autonomia dos povos. O Brasil tem a soberania como princípio constitucional pétreo, portanto impermeável à discussão e mudança. Ao afrontar a soberania sob a desfaçatez da liberdade de expressão absoluta, Musk incorre no comportamento arbitrário por realçar a pretensão ao poder ilimitado da sua organização na disputa como estado em favor de seus interesses.


Abolição do tempo e do espaço


Um dos efeitos desse modelo digital adotado por Musk et caterva é a sensação da intemporalidade, da presentificação e da exponenciação da individualidade sobre o público. O sujeito, ao entrar no looping das redes, submetendo-se à roda infinita de mensagens, abole a referência temporal e torna aquele momento um presente adensado, permanente, abarcando passado e futuro.


Como combater tal conduta e relação de poder com as armadas tradicionais de governo ou com os recursos da estrutura do Estado sistema? O combate é político e jurídico. As decisões do STF evidenciam esse norte. Pois o que está em jogo é a organização da sociedade brasileira em torno dos seus interesses como Estado soberano.


O mandato do presidente Trump serve de embalagem para os interesses das três bigs, mas há o destaque para as tecnológicas, representadas por Musk no governo norte-americano. E a gravidade dessa política de dominação é acentuada na medida em que Trump volta-se para o modelo colonial mercantilista ao pretender isolar os EUA sob um controle pleno sobre os países aliados pós-Segunda Grande Guerra. Ao anunciar a pretensão de anexar o Canadá, a Groelândia, o controle sobre a mineração na Ucrânia o domínio de fato sobre o canal do Panamá e o enfraquecimento da Europa, Trump alimenta as pretensões das big techs sobre a fragilização dos outros países, em especial os mais dependentes economicamente dos Estados Unidos.


Tanto que Trump anuncia aos quatro ventos a ambição em deter o domínio de territórios ricos nas terras raras, que abrigam metais altamente preciosos para a indústria tecnológica. O lítio, o níquel, o grafite, cobalto e outros menos conhecidos, como o neodímio, cuja natureza é potencializar o fenômeno magnético, fundamental para os motores elétricos.


Hoje, a China detém 50% das reservas mundiais das terras raras. E processa 70% da produção mundial. Aí o conflito que atemoriza Trump e as big techs norte-americanas. No meio disso, os países de menor poder, que sofrem com a briga dos impérios.



Marcel Cheida é jornalista, professor na Faculdade de Jornalismo na Puc Campinas.

 

 

 

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